Na Idade Média as aulas duravam por volta de 20 minutos. Os alunos não conseguiam ficar parados, com atenção fixa, mais do que esse tempo. Apesar da klismos grega, a cadeira com um apoio oval, ser popular entre os séculos V a.C. e II, o uso da cadeira para sentar durante uma preleção só reapareceu com força no século XVIII. A cátedra, cadeira na qual se sentava o professor, era uma derivação de sua função original, que era facilitar o parto em certos casos, e tinha a função de elevar a posição do mestre em relação aos seus alunos.
Os bancos foram introduzidos nas igrejas protestantes, principalmente na Inglaterra, a partir do século XIII. Até então, várias missas podiam acontecer ao mesmo tempo, e as pessoas ficavam andando pelas naves e sacristias. A ideia de um público quieto, silencioso e sentado, surgiu no teatro apenas a partir do século XIX. Antes disso, participar com comentários orais, desenvolver conversas paralelas e atirar objetos aos maus atores eram práticas correntes.
Em 1902, Marie e Pierre Curie ganham o Prêmio Nobel de Química, juntamente com Becquerel, pela descoberta da radioatividade. A partir de então substâncias como o rádio, o tório e o urânio passam a ser comercializadas livremente, aliás, como a cocaína, empregada medicamente com fins analgésicos e anestésicos. Dentistas passam a segurar os filmes para raios X com seus próprios dedos, recomenda-se a ingestão de substâncias radioativas para tratamento de câncer no estômago, seu uso no pescoço para estimular a tireoide ou no escroto para melhorar a libido, aplicações com inaladores para curar doenças mentais. Mais de uma década e as vidas de Curie e Becquerel foram necessárias para que o uso controlado da radiação fosse estabelecido.
É possível que estejamos vivendo uma combinação entre os dois processos históricos que apresentei acima, quando pensamos em uma primeira geração de crianças nascidas e criadas sob os auspícios de tablets, smartphones, bandas largas e demais experiências de acesso ao mundo digital. Assim como a introdução de bancos e cadeiras mudou nossa relação com o saber, com a disciplina do corpo e da atenção, gerando uma nova economia de autoridade, a descoberta da radiação deixou um rastro de efeitos imprevisíveis e deletérios para os que inauguraram seu uso.
Seria, portanto, um pouco inócuo especular sobre as condições da implantação do modo de vida digital enquanto ele está se implantando. Por outro lado, foram os dentistas que perderam seus dedos e os pesquisadores que registraram fortuitamente as primeiras queimaduras ocasionadas pelo material radioativo quem primeiro testemunharam as evidências necessárias para o uso controlado dessas substâncias.
Daí que o presente ensaio tenha uma intenção diagnóstica à qual adiciono ilações prognósticas sobre o uso da “substância” digital.
Não creio que uma epidemia de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade tenha ocorrido entre alunos medievais, assim como parece improvável a formação de sintomas específicos do uso intoxicante da vida digital. Os sintomas serão provavelmente difusos, e a epidemia virá sem que entendamos seu processo de transmissão.
A intoxicação digital crônica é uma patologia discursiva, ou seja, deve ser entendida simultaneamente como uma alteração do laço social, da economia de gozo e da relação de reconhecimento, as três perspectivas que presidiram a construção tardia do conceito de discurso em Lacan. Ela é um ramo das patologias ocupacionais, uma espécie de burnout infantil.
Freud referia-se à “toxina sexual”, em seus primeiros escritos, como uma quantidade de libido que não podendo encontrar seu destino nem em representações substitutivas (ideias obsessivas) nem em objetos do mundo (fobias) nem em uma parte do corpo (conversões histéricas), não sendo também objeto de descarga, transforma-se em angústia, capaz de se apresentar como perturbação da atitude atencional (neurastenia), como ataques de pânico (neurose de angústia) ou como angústia somática (hipocondria).
Nesse ponto Freud introduz a ligação possível entre um agente etiológico difuso, como uma determinada prática da sexualidade, e sua articulação com processos psíquicos:
“As primeiras [condições etiológicas], por exemplo, o coitus interruptus, a masturbação e a abstinência são, todavia, multívocas e capazes de produzir qualquer neurose; somente os fatores etiológicos abstraídos destes, como o apressamento inadequado, a insuficiência psíquica uma defesa com substituição, possuem um nexo inequívoco e específico com a etiologia de cada uma das grandes neuroses.”
Ou seja, não é a prática em si da masturbação ou da abstinência que possui papel causal. Elas favorecem ou desfavorecem modalidades de trabalho psíquico, de relação com o outro e de experiência de prazer na corporeidade que possuem, aí sim, força etiológica.
Temos aqui um modelo metodológico para a abordagem psicanalítica de práticas sociais e eróticas. Elas não devem ser consideradas em uma conexão necessária com determinadas disposições ou posições subjetivas, mas referidas a processos específicos, que são, por assim dizer, conceitos de mediação intensiva. Neste caso: o apressamento, a insuficiência, a evitação, que podem ser comparadas e contrastadas com as práticas de defesa por substituição, que dependem do reconhecimento e interiorização ou exteriorização de conflitos.
A mediação intensiva ligada à vida digital aparece nos relatos de consumo excessivo de telas com três traços constantes:
(a) aumento da velocidade nas demandas, trocas e facilidade de acesso à informação;
(b) superficialidade de contato interpessoal, redução da espessura imaginária da vida de fantasia e correlato ao aumento de sua extensão;
(c) introdução de práticas que substituem o conflito, por exemplo, a evitação situacional por meio da exclusão, invisibilidade ou indiferença construída em relação aos elementos aversivos.
Ou seja, nesses casos, o conflito material, moral e atual, com sua força na determinação de práticas sociais, é considerando em um registro de causalidade paralela à do recalque, da fantasia rememorada e do retorno do infantil.
Treze anos depois, em seu texto mais fortemente dirigido à intervenção da psicanálise em práticas sociais, o problema das neuroses atuais retorna com a mesma metáfora da toxicidade:
“Nas primeiras [neuroses], as perturbações (sintomas), ou seja, que se exteriorizam em operações corporais ou nas anímicas, parecem ser de natureza tóxica: seu comportamento é em tudo parecido ao que sobrevém à causa de um influxo hipertrófico ou privação de certos venenos nervosos.”
No interior do debate com Beard, Binswanger e Ehrenfelds acerca do papel da moral dupla na determinação de sintomas nervosos da modernidade, Freud novamente descarta a abordagem direta que traduz práticas em perturbações e recorre aos conceitos de mediação: privação (“Entbehrung”) e influxo hipertrófico (“übergrosser Zufuhr”). A toxidade aparece então como modelo diagnóstico para um tipo de ação específica que atua, intrusivamente, de forma tóxica (toxischer) e venenosa (Nervengifte).
A tradução de “übergrosser Zufuhr”, por “influxo hipertrófico” é problemática porque “übergrosser” é um termo muito simples e corrente, que denota algo como muito grande, super grande ou excessivo e “Zufuhr” não é bem influxo, mas fornecimento, alimentação, pedido ou oferta. O que se perde nessa tradução são exatamente as ressonâncias que nos levariam à noção francesa de demanda (demande).
Se juntamos a privação (“Entbehrung”) com a “Zufuhr”, encontramos todos os elementos que definem a estrutura da demanda segundo Lacan, ou seja: te peço, que recuse, o que ofereço… Porque não é isso.
Um excesso de demandas caracterizaria, assim, um apressamento, uma urgência tóxica nas voltas que a demanda dá em torno de um objeto, construído, retrospectivamente, como causa posterior e ausente deste trabalho. Ora, essa demanda, assim caracterizada, ocorre dentro de um discurso que tem como marca característica um traço temporal: a atualidade
As neuroses atuais (“Aktuelle”) são, sobretudo, uma interpretação que fazemos sobre nosso próprio tempo, cuja ilusão é justamente nos fazer crer que somos contemporâneos de nós mesmos, que nossa época, que nosso tempo é o mesmo para todos que o vivem e que ele é transparente aos que o vivem. Ora, nada mais falso do que isso, quando se trata da forma histórica de nossa modalidade de sofrimento.
Não é por outro motivo que Beard descrevia o nervosismo moderno com as mesmas ideias de aceleração, pressa e falta de tempo que os primeiros moradores das cidades industriais, na Inglaterra ou na França do século XVIII, testemunharam como progresso ou que os românticos alemães do final do século XVIII tematizaram com a perda da experiência da natureza. Ainda que tais termos sejam reempregados, quase que em exata repetição, para descrever o tempo de hoje, o último tempo, o tempo atual, sua emergência como valor é típica da modernidade e como tal se coliga aos nossos modos históricos de individualização. Ou seja, a neurose atual não é um fenômeno datável concernente à interpretação que Freud dava à sua época, em 1908, mas um dispositivo, uma estrutura de discurso, mais provavelmente uma forma-tipo do discurso do mestre.
Chegamos assim à hipótese de que a intoxicação digital infantil decorre de uma nova moral sexual civilizada que altera difusamente práticas sociais e o uso da linguagem, por exemplo, superfícies de imagem que quando tocadas determinam alterações no padrão de continuidade e transformação dessa imagem.
Esses aparatos podem ser instalados em situações móveis como carrinhos de bebês, automóveis e empregados em virtualmente em qualquer situação determinando um padrão de aquietamento, ocupação atencional e uma divisão de investimento libidinal permanente entre uma paisagem de acontecimentos secundários e um foco de circulação concentrada de mensagens-imagens.
Na segunda infância, esse dispositivo afetará mais drasticamente a socialização, por meio das redes sociais, onde se disponibilizam encontros e comunicação quase-permanentemente com outrem. A dinâmica de ausência e presença, estruturada no primeiro tempo, reverte-se aqui em uma fusão entre a demanda generalizada confluente com uma determinada gramática de reconhecimento, coordenada quantitativamente pelo número de sanções e qualitativamente pela intensificação das imagens ou avatares de si e de outros.
O terceiro tempo corresponde à unificação dessas duas esferas em uma modalidade de saber mais propriamente integrada aos processos educativos e laborais. Então, a entrada na linguagem e a aquisição da fala, no primeiro caso, e a generalização da extensão simbólica, do segundo fundem um tipo de demanda com uma forma de discurso, concluindo a formação de um modo de subjetivação marcado pela intoxicação digital crônica.