Coerência é uma palavra que vem do latim cohaerentia, do radical haereo, ponto fixo, imóvel parado, de onde teria evoluído para opinião, sistema ou doutrina (haeresis). Coerência indica como estamos comprometidos com o que acreditamos.
Nossas palavras têm crédito, confiabilidade e consequência no tempo, e a coerência traduz a relação do sujeito com sua própria palavra. Entretanto, muitas vezes, em nome da coerência nos apegamos a uma forma de vida que precisamos ou queremos abandonar.
A ideia de um ponto fixo, imune ao tempo, representado por princípios, se choca contra outro valor decisivo e importante: a capacidade de se rever, transformando-se conforme o tempo e adaptando-se ou desadaptando-se conforme a mudança de cenário ou perspectiva.
Frequentemente a coerência em relação aos outros está em conflito com a coerência em relação a si. Por isso, quando mudamos de opinião ou conduta, tendo consciência e reconhecendo as razões do processo de mudança, não chamamos isso de incoerência, mas de autenticidade, renovação ou atualização.
Isso nos leva a reinterpretar o que significa coerência, não como adesão irrestrita a um sistema de valores, mas como uma adesão relativa a uma espécie de regra de transformação. Ou seja, mudamos de caminho, mas a direção ou sentido ainda assim pode ser discernida.
Usamos estes dois valores de modo não simétrico e equitativo. Em geral, esperamos do outro alto nível de fidelidade e compromisso com a palavra empenhada e de nós mesmos tolerância para mudar quando necessário, segundo contextos e circunstâncias.
Por isso muitos conflitos seguem a gramática que nos divide entre trair os outros (e a nossa palavra empenhada para eles) e ser fiel a nós mesmos (e aos nossos processos, tantas vezes silenciosos, de transformação).
Biblicamente, para criticar os outros não hesitamos em “dar o tapa na cara” da incoerência, mas para nos defender sacamos a carta da autenticidade, do contexto e da história mais bem contada.
Tudo se inverte quando nos apaixonamos hipnoticamente pelo outro, a ponto de que suas incoerências e incongruências sejam atribuídas aos outros do outro, ao mundo, ou pior ainda, a nós mesmos.
Este mecanismo de moral dupla discursiva atua como corretor automático para manter nossas ilusões.
Quando admiramos uma pessoa e ela nos decepciona, criamos suplementos explicativos do tipo: “as circunstâncias mudaram”. Mitigamos a incoerência do outro apelando para aspectos “positivos”, com os quais ele ainda se mantém coerente. Protegemos nossas crenças dizendo que aqueles que detestamos seriam ainda mais incoerentes.
Em suma, a coerência é tanto um critério de justiça subjetiva quanto um subterfúgio para recusar a realidade.
Dois pesos, duas medidas.
Por isso a força da realidade dos fatos é tão pequena quando se trata de mudar crenças. Por isso também temos tanta dificuldade de deixar de amar alguém que nos causa mal, ou sair de relações tóxicas.
De Aristóteles a Kant entendemos que a verdade é a adequação da coisa ao intelecto ou a correspondência entre as palavras e fatos.
Contra isso, o filósofo da lógica, Alfred Tarski, argumentou que a verdade de um sistema depende da relação lógica dele com ele mesmo. Ou seja, a lógica também pode ser avaliada do ponto de vista da relação com o mundo e de como as coisas são, mas de como mantemos uma certa coerência em nosso sistema de juízos.
Por isso, a coerência anda de mãos dadas com a verdade e a honestidade.
A teoria da verdade como coerência parece ter encontrado uma inusitada aplicação prática quando pensamos nos mundos fechados em bolhas de opinião e nos condomínios de moralidade.
Como se aumentando o número de pessoas acreditando no que eu acredito isso, por si só, tornasse minha crença mais verdadeira.
Em função deste prazer da confirmação resistimos a admitir a incoerência de quem uma vez ganhou nossa confiança.
Isso causa dor psíquica chamada arrependimento e, em geral, demanda trabalho psíquico de transformação, cujo custo nossa preguiça mental detesta.
Dar o braço a torcer, voltar atrás e rever crenças são um importante sinal de saúde psíquica.
A capacidade de sentir vergonha, em vez de ódio, ao ver sua coerência derrotada pela verdade —dos fatos ou dos argumentos— significa que a realidade ainda é capaz de gerar transformações em você.
Uma grande dificuldade em reconhecer seus erros e aprender com eles remonta a nossa história, fértil na produção de personagens que, nesta hora, em vez de acolher a vulnerabilidade de quem está mudando, saca logo a carta da crueldade, do triunfo de supremacia e o saco de pancadas de tudo o que ficou retido no ressentimento alheio.
O punitivismo, que cada vez mais faz parte da moralidade brasileira, mostra-se agora um duplo fator de desaprendizagem.
Quando você perceber que alguém está neste estado de transformação íntima deixe a incoerência fazer seu trabalho. Ela age melhor no silêncio das consciências individuais, na compreensão do tempo de cada um, do que na guerra de opiniões.
Evite usar aquela voz materna chata, que diante do desastre consumado murmura: “eu bem que te avisei”. Dizer isso cria resistência. A pessoa pode substituir o penoso trabalho de mudança subjetiva, que começa pela infiltração da dúvida, pelo reforço da raiva contra você e volta a se apaixonar pela coerência de si.
A autocrítica é um processo ambíguo.
Ela pode acabar em transformação genuína, quanto em culpa masoquista e crueldade sádica. Por isso, fazer as pazes com o outro demanda autocrítica que nos reconcilia conosco.
Em nossa atual demência provisória estamos presos a um dilema conhecido das brigas de casal: o outro tem que admitir primeiro que errou, ou que errou também, ou que nem tudo é culpa dele. Enquanto isso não acontece, os filhos sofrem, a família vai para os ares e o casamento acaba.
A dificuldade absoluta de fazer este gesto vem de uma confusão difícil de desfazer entre culpa, responsabilidade e implicação.
Quando a autocrítica é vivida com culpa, ela se torna apenas um expediente para que o outro goze de nós, de modo ainda mais cruel, nem que seja na nossa fantasia.
Quando a autocrítica vem com responsabilidade, a humilhação diminui, mas ainda assim temos que encarar a difícil tarefa de reparar o estrago feito, um trabalho que custa caro, subjetiva e objetivamente.
Contudo, o grau mais elevado da autocrítica acontece quando há implicação. Aqui não nos importamos tanto com orgulho ou preguiça, pois nos ocupamos de cuidar do processo transformativo, de nós mesmos e do mundo.
A recusa da autocrítica, com recuperação da coerência em um novo lugar, frequentemente é dificultada pelo ódio. Não o ódio de que se o outro pisou em nosso pé, ele deve pedir desculpas, mas na ganância do que mais-de-gozar da razão, do direito e da injustiça que extrapola a reparação em vingança.
Mas aceitar desculpas inicia o processo de reparação, não é a reparação em si. Se o outro promete que não vai fazer de novo, sou solicitado ao trabalho de acreditar … de novo.
O ódio é mais fácil: ele faz as pessoas se afastarem, desistirem uns dos outros, cujo consolo é a coerência de valores e a “incoerentização” do outro.
Esse ódio não passa com o tempo. Ele evolui para ressentimento, porque demanda que o outro se torne outra pessoa, antes que eu possa ou tenha que fazer qualquer novo gesto psíquico. Neste caso, cada conversa só confirma o que o outro é. Pior, confirma que ele não quer mudar, porque não aceita o que eu digo, portanto, ficamos na mesma.
Como sair deste jogo de espelhos e ecos?
Um curso rápido de psicanálise à distância diria que é preciso responder de outro lugar, que não aquele no qual se é colocado. Mudar o afeto básico da conversa. Escutar o que o outro está dizendo, em vez de quem ele é.
Em estado de massa somos levados a pensar, dizer e agir de forma irreconhecível, para nós mesmos, em estado “normal”.
No grupo digital é pior ainda, me empodero como grupo imaginário e me desresponsabilizo pela própria palavra.
A recusa da política, como campo minado para quase metade dos brasileiros, em véspera de eleições, é a evitação de olhar para o que há de pior na realidade e em nós mesmos, mas também sintoma de nossa patologia da coerência.
O dado é tão compreensível, quanto a indiferença relativa ou isenta, no enfrentamento de temas como violência, corrupção, racismo, injustiça e desigualdade social.
Compreensível porque nos protege do trabalho da dúvida, da incerteza e do conflito mal tratado.
Mas infelizmente esta evitação do conflito nos deixa sozinhos e sentimos que não podemos mudar nada na realidade. Por isso muitas pessoas cultivam sua própria coerência não se envolvendo, não opinando, não participando.
Mas eleições são momentos de mudança na realidade, e é por isso que somos chamados a viver o conflito de outra maneira.
Por isso somos chamados a olhar bem de frente para o problema, não desviar os olhos e voltar para a conversa.
Isso começa por perguntar, junto com João Cabral de Melo Neto: qual é a parte que me cabe neste latifúndio?
Ou então com Freud: como você concorre para produzir a desordem da qual você se queixa?