A empresa de pesquisa The Block, que faz análise do mercado de criptomoedas, declarou que 2021 foi “o ano dos NFTs”, um produto digital que possui registro de autenticidade. Segundo o 2021 Industry Report, da startup DappRadar, as transações de tokens não-fungíveis no ano passado movimentaram mais de US$ 23 bilhões. Só o valor de mercado das 100 principais coleções foi estimado em US$ 16,7 bilhões.
Mas, com esse crescimento exponencial, os NFTs também viraram um para-raio de polêmicas. Além da preocupação com seu impacto ambiental, alguns têm promovido temas como racismo, nazismo e pornografia.
Em fevereiro, a conta no Twitter @MetaSlaveNFT foi acusada de racismo por comercializar fotos de pessoas negras, numa coleção batizada como MetaSlaves (em tradução, “metaescravos“).
O material estava hospedado na OpenSea, um dos maiores marketplaces para NFTs no mundo. Também por lá, já passaram tokens com a imagem de Adolf Hitler e da suástica, além de ilustrações e pinturas plagiadas.
Trechos de músicas também estão sendo comercializados sem a permissão de seus autores. O site HitPiece trazia tokens extraídos de canções populares e algumas até de artistas pouco conhecidos.
A página já foi retirada do ar, mas a dúvida permanece: como será a regulamentação desse novo setor?
Descentralizar ou regular?
Como será possível prevenir esse tipo de crime, ou mesmo a apropriação da arte dos outros, sem uma infraestrutura estatal ou organizações para estabelecer regras? Resta saber se o mercado tem interesse nessa conversa — e se os governos estão preparados para ela.
Tiago Amaral, 29, fundador da plataforma Inevitable, que oferece cursos de capacitação sobre a Web 3.0 (como tem sido chamada a internet do futuro) e NFTs, afirma que coleções problemáticas de NFTs existem, em parte, porque “qualquer um pode criá-las”.
Para ele, o caminho para um mercado justo passa pela regulamentação. “Muitas pessoas nesse universo cripto são simplistas em relação à descentralização. Querem que tudo seja descentralizado. Acho que o núcleo da ideia é interessante, mas, no mundo real, a aplicabilidade é difícil”, diz.
Para Amaral, o debate ainda tem que avançar bastante, mas manter um mercado dessa escala totalmente descentralizado é “praticamente impossível”.
“Se você tem um marketplace totalmente descentralizado, com uma coleção que está fazendo propaganda ou discurso de ódio, como essa [MetaSlave], quem vai colocar essa coleção abaixo?
Já o professor Eduardo Ferreira dos Santos, professor da Faculdade de Ciência da Informação e Informática da Universidade Presbiteriana Mackenzie, acredita que não existe uma relação de causalidade entre a descentralização do mercado de NFTs e conteúdo criminoso nos tokens.
“Não é que não haja fiscalização. Pelo contrário: como a rede não pertence a ninguém, ela é fiscalizada por todos”, afirma. Para ele, a Blockchain torna mais fácil identificar uma pessoa com um NFT racista “do que alguém que coloca isso num servidor qualquer na internet. Tudo que você faz lá dentro não só é público como é acessível por todos, então fica mais fácil de fiscalizar”.
A polêmica dos escravos virtuais
No caso da MetaSlave, a própria OpenSea deletou o conteúdo — mas somente depois do caso gerar intensa revolta nas redes sociais.
A coleção vendia NFTs com fotos de pessoas negras e um número atribuído. No total, eram 1.865 itens: o mesmo ano da publicação da 13ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que aboliu a escravidão.
Inicialmente, a conta no Twitter responsável pelo projeto se justificou dizendo apoiar o movimento Black Lives Matter e estar homenageando George Floyd, homem preto cuja morte por violência policial gerou vários protestos nos EUA e no mundo.
Em seguida, alegou que os NFTs também visavam “lembrar a História para que ela não aconteça novamente”. Eles passaram a ser listados com nomes como “trabalho duro” e “dinheiro sangrento”.
Por fim, a conta publicou um tuíte em que dizia que o projeto iria mostrar que “todo mundo é escravo de alguma coisa”. Eventualmente, porém, ela foi deletada — assim como a coleção de tokens à venda.
Mais conteúdo impróprio
A OpenSea também já deletou materiais que faziam referência ao nazismo, como a coleção Adolf Hitler Kunst (“pinturas de Adolf Hitler”, em tradução literal), que disponibilizava diversas obras do ditador alemão. Seu autorretrato estava listado por 1,1 ETH (cerca de R$ 15 mil).
Uma suástica em pixel art, listada na plataforma em 28 de janeiro, saía ainda mais caro: 199 ETH (cerca de R$ 3,2 milhões). O preço foi retirado pouco tempo depois, mas ainda é possível visualizá-lo na seção “Item activity” da página.
Também permanece no acervo uma coleção de imagens pornográficas com o nome “Gay Niggas” (este segundo termo é considerado uma ofensa racial nos EUA).
O descritivo afirma que “85% dos lucros serão doados para fundações de apoio do movimento Black Lives Matter e LGBTQ+”. Mas, caso os próprios autores não queiram mantera a transparência desse compromisso, não há maneira do comprador confirmá-lo.
Em sua página de ajuda, a OpenSea explica que um token pode ser excluído da plataforma (embora não possa ser retirado da blockchain) caso infrinja propriedade intelectual, promova suicídio ou automutilação, doxing, incite ódio, violência, degradação ou viole de alguma outra forma os Termos de Serviço do site.
De toda forma, até a finalização desta reportagem, a plataforma não havia respondido aos pedidos de comentário do Tilt.
Pegada de carbono
Outro debate levantado pelo mercado de NFTs é o impacto ambiental. Isso porque a mineração de criptomoedas (usadas para comprar os tokens) e a mintagem (transformação de um objeto em um NFT) consomem muita energia elétrica devido ao uso intenso do hardware.
O site cryptoart.wtf analisou 18 mil NFTs e percebeu que, em média, um token possui uma pegada de carbono equivalente a mais de um mês de eletricidade para uma pessoa que vive na União Europeia. Entretanto, o criador desativou o site devido a usos desonestos das informações.
Segundo Tiago Amaral, o mercado vem buscando soluções. Um exemplo é a Polygon (rede desenvolvida para a escalabilidade da criptomoeda Ethereum), que utiliza o mecanismo Proof of Stake (PoS), com um consumo energético menor.
O professor Eduardo Ferreira concorda. Ele cita, por exemplo, a comercialização de créditos de carbono para a Blockchain. “Hoje em dia, esse mercado é muito exclusivo. É difícil gerar e vender esses créditos. Então já existem iniciativas onde esse crédito é distribuído na rede para que as pessoas consigam, de fato, comercializá-lo”. Um exemplo é o The Climate Warehouse, idealizado pelo Banco Mundial.
“A tecnologia dos NFTs, em si, é revolucionária. Ela tem muitos aspectos que vão mudar muitas indústrias. Só que a gente precisa educar as pessoas para agir dentro desse novo mundo”, diz Amaral.
*Com informações de Vice e Wired.