O matemático que foi ‘anjo da guarda’ de Albert Einstein – 27/07/2022


Como amigo e matemático, Marcel Grossmann esteve em alguns dos momentos mais cruciais da vida do gênio da física. Albert Einstein expressou sua gratidão a ele.

Albert Einstein tinha um amigo muito próximo para quem não economizava elogios.

“Suas anotações poderiam ter sido impressas e publicadas”, disse ele à esposa do matemático Marcel Grossmann, sobre o tempo em que eles eram colegas de classe na Suíça.

“Quando chegava a época de preparar-me para os exames, ele sempre me emprestava aqueles cadernos de anotações, que eram a minha salvação. Não consigo sequer imaginar o que teria feito sem aqueles livros”, afirmou o gênio da física, segundo Walter Isaacson na sua extraordinária biografia Einstein: Sua Vida, Seu Universo (publicada no Brasil pela Companhia das Letras, 2007).

E o matemático também via seu amigo com admiração. “Esse Einstein um dia será um grande homem”, afirmou ele a seus pais.

Às vezes, Einstein e Grossmann visitavam uma cafeteria para conversar. Sua amizade ultrapassou a vida estudantil. Isaacson descreve Grossmann como o “anjo da guarda” de Einstein.

“Quando éramos estudantes, nós, Albert Einstein e eu costumávamos analisar psicologicamente os conhecidos comuns e a nós mesmos. Em uma dessas conversas, ele fez a observação precisa: sua principal fraqueza é que você não consegue dizer ‘não'”, segundo Grossmann.

Na Politécnica

Grossmann nasceu em Budapeste, na Hungria, em 1878. Mas sua família era da Suíça e para lá se mudou com seus pais, aos 15 anos de idade.

Na Suíça, Grossmann estudou na Escola Politécnica de Zurique, hoje conhecida como ETH, onde conheceu Einstein, que estudava para tornar-se mestre em física e matemática.

“Há quem afirme que Einstein faltava às aulas”, segundo Tilman Sauer, professor de história da matemática e ciências naturais da Universidade de Mainz, na Alemanha.

“Não estou certo disso, tenho minhas dúvidas. Acredito que Einstein fosse um bom aluno, assistisse às aulas, mas sabemos que, para preparar-se para os exames, ele usava as anotações de Grossmann.”

Isso porque as anotações do colega de Einstein eram de primeira qualidade. Quando voltava para casa, Grossmann passava suas anotações a limpo e as estudava meticulosamente.

Isaacson conta que, “nos seus exames parciais de outubro de 1898, [Einstein] havia sido o primeiro da classe, com média de 5,7 de uma nota máxima de 6. O segundo, com 5,6, era seu amigo e encarregado de fazer as anotações de matemática, Marcel Grossmann.”

‘Fiquei comovido’

Pode parecer inacreditável, mas Einstein teve dificuldade para encontrar emprego no setor acadêmico.

“De fato, passariam nada menos de nove anos depois da sua formação na Politécnica de Zurique em 1900 – e quatro anos depois do ano milagroso em que ele não só virou a física de cabeça para baixo, mas finalmente conseguiu ter sua tese de doutorado aprovada – para que lhe fosse oferecido um cargo de professor universitário”, explica Isaacson.

No outono de 1900, Einstein teve cerca de oito empregos esporádicos como professor particular e enviou várias cartas para professores de universidades europeias, pedindo que fosse considerado para um cargo. “Ele queria ser assistente de algum professor”, destaca Sauer, que foi editor-colaborador da série de livros The Collected Papers of Albert Einstein (“Coletânea de escritos de Albert Einstein”, em tradução livre).

Quando Einstein já começava a perder a esperança, “Grossmann escreveu para ele dizendo que provavelmente haveria uma vaga no Escritório Suíço de Patentes, em Berna. O pai de Grossmann conhecia o diretor e dispôs-se a recomendar Einstein”, segundo Isaacson.

“Caro Marcel! Quando encontrei sua carta ontem, fiquei profundamente comovido pela sua devoção e compaixão, que não permitiram que você esquecesse seu velho e infeliz amigo…”, respondeu Einstein por carta.

Einstein conseguiu o emprego em 1902 e foi ali, no Escritório de Patentes que ficou famoso, que o gênio de 26 anos, então desconhecido, publicou em 1905 sua Teoria da Relatividade Restrita. Mais precisamente, ele escreveu, enquanto ocupava aquele cargo, cinco estudos científicos que revolucionaram a física do início do século 20.

Einstein descreveria a ajuda para obter esse emprego como “a maior oferecida a mim por Marcel Grossmann como amigo”. De fato, naquele ano, o físico dedicou a ele sua tese de doutorado.

Em 1909, Einstein conquistaria uma vaga como professor associado da Universidade de Zurique e, em 1911, seria professor da Universidade de Praga, hoje capital da República Checa.

Grossmann, o professor

Desde o princípio, Marcel Grossmann marcou forte presença no mundo acadêmico. Pouco depois de formar-se professor de matemática, ele conseguiu um cargo como assistente de professor na própria Escola Politécnica.

Ele se especializaria em geometria não euclidiana e geometria projetiva, publicando vários estudos neste campo.

Sua dedicação como professor e pedagogo seria sua característica ao longo da carreira, como conta sua neta Claudia Graf-Grossmann no livro Marcel Grossmann: for the Love of Mathematics (“Marcel Grossmann: por amor à matemática”, em tradução livre).

“Ele nunca se permite dar aulas por horas e horas sem ter a certeza de que seus alunos entendam o que ele tenta ensinar, como fizeram seus professores quando estava na escola secundária em Budapeste”, segundo ela.

“Pelas suas próprias experiências escolares, ele sabe que o prazer de aprender e o sucesso resultante são incomparavelmente maiores quando a matéria é ensinada de forma apaixonante e facilmente compreensível.”

Em 1905, Grossmann mudou-se para a cidade suíça de Basileia, onde lecionou e publicou dois livros sobre geometria, que ensinaram diversas gerações de estudantes. E, em 1907, ele foi nomeado professor de geometria descritiva na Politécnica.

“Com Grossmann em um cargo importante no ETH, não é surpresa que ele se dedicasse a trazer Einstein de volta a Zurique”, escreveu Sauer no seu estudo Marcel Grossmann and his Contribution to the General Theory of Relativity (“Marcel Grossmann e sua contribuição para a Teoria da Relatividade Geral”, em tradução livre).

Até que, em 1912, Einstein foi nomeado professor de física teórica no ETH. Ele se reuniu com Grossmann e comentou suas ideias para generalizar sua Teoria da Relatividade Restrita. “Você precisa me ajudar ou ficarei louco”, disse Einstein.

Grossmann, o guia

Em um artigo sobre o matemático, os professores John Joseph O’Connor e Edmund Frederick Robertson, da Universidade Saint Andrews, no Reino Unido, contam que, em 1912, Einstein lutava para “ampliar sua Teoria da Relatividade Restrita para incluir a gravitação”. E encontrou um grande guia no seu amigo Grossmann.

“A necessidade de ir além da descrição euclidiana do espaço-tempo foi articulada em primeiro lugar por Grossmann, que convenceu Einstein de que essa era a linguagem correta para o que se tornaria a relatividade geral”, segundo David McMullan, professor de física teórica da Universidade de Plymouth, no Reino Unido, declarou em 2020 à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Grossmann sugeriu o trabalho do matemático alemão Bernhard Riemann e o cálculo tensorial desenvolvido pelos italianos Gregorio Ricci-Curbastro e Tullio Levi-Civita. Ele próprio era especialista em cálculo tensorial e suas explicações acabaram por convencer Einstein.

Isaacson recorda que, nos dois cursos de geometria que fizeram na Politécnica, Einstein tirou nota 4,25, enquanto Grossmann conseguiu a nota máxima, 6.

“Estou trabalhando exclusivamente no problema da gravitação e acredito que posso superar todas as dificuldades com a ajuda de um amigo matemático por aqui”, escreveu Einstein em 1912, ao físico teórico alemão Arnold Sommerfeld. “Mas uma coisa é certa: nunca havia trabalhado tanto na minha vida e adquiri enorme respeito pela matemática, cujos aspectos mais sutis havia considerado até agora, na minha ingenuidade, como mero luxo.”

“Em comparação com este problema, a teoria original da relatividade é um brinquedo de crianças”, afirmou Einstein.

A geometria não euclidiana

“Na segunda metade do século 19, começou a desenvolver-se a geometria não euclidiana e o conceito de geometria de Riemann. Era o que Einstein precisava para formar a teoria generalizada”, segundo Manuel de León, professor de pesquisa do Conselho Superior de Pesquisas Científicas da Espanha e acadêmico da Real Academia de Ciências da Espanha.

Mas havia um detalhe: Einstein “não estava familiarizado com ela”.

León afirma que “o trabalho de Grossmann foi fundamental para abrir o caminho para Einstein, explicando para ele todo esse campo que estava nascendo no âmbito da matemática”.

Para Einstein, era preciso que suas ideias sobre a física pudessem ser “materializadas com um modelo matemático e esse modelo era fornecido pela geometria não euclidiana”, segundo o professor espanhol. Essa expressão define a geometria que difere da geometria de Euclides, com relação ao axioma euclidiano sobre a existência de uma paralela externa a uma reta, como a geometria hiperbólica e esférica.

Por isso, quando começou a elaborar sua Teoria da Relatividade Geral, Einstein percebeu que precisaria usar a geometria diferencial, desenvolvida a partir do século 19 por grandes matemáticos como Gauss, Bolyai, Lobachevsky, Riemann, Ricci, Levi-Civita, Christoffel e muitos outros.

“A ideia essencial de Einstein é: a massa cria curvatura ao seu redor, mas como? Qual é o modelo matemático capaz de expressar essa curvatura se eu tenho a massa? Para isso, ele precisava da geometria diferencial”, explica León.

“O maravilhoso sobre Einstein é que ele foi capaz de reunir todas essas coisas e, com sua intuição física, encontrar a equação de campo”, destaca ele. Mas, para chegar a esse ponto, o gênio trabalhou arduamente.

Juntos

Em 1913, os dois amigos publicaram um artigo “unindo a matemática sofisticada de Grossmann e a física de Einstein”, segundo Sauer. Esse artigo é considerado um passo importante no caminho para a Teoria da Relatividade Geral.

“Juntos, eles trataram de dar sentido à matemática no contexto de que Einstein precisava para sua teoria”, explica Sauer. Mas eles não conseguiram encontrar as equações corretas do campo gravitacional.

Em 1914, Einstein e Grossmann publicaram outro artigo conjunto, mas, nesse ano, a colaboração entre eles terminou. Einstein havia assumido uma vaga de professor em Berlim, na Alemanha, e de lá prosseguiu trabalhando no problema da gravitação.

No final de 1915, ele chegou à formulação definitiva da sua teoria e a publicou, revolucionando a história da ciência e a forma como entendemos o universo.

“Einstein destacou que sua Teoria da Relatividade Geral foi elaborada com base no trabalho de Gauss e Riemann, gigantes do mundo matemático. Mas ele também se baseou no trabalho de figuras destacadas da física, como Maxwell e Lorentz, e no trabalho de pesquisadores menos conhecidos, particularmente Grossmann, Besso, Freundlich, Kottler, Nordström e Fokker”, segundo Michel Janssen e Jürgen Renn no artigo History: Einstein was no Lone Genius (“História: Einstein não foi um gênio isolado”, em tradução livre), publicado na revista Nature.

Sauer conta em seu artigo que, meses depois de publicar a teoria, Einstein escreveu: “quero reconhecer e agradecer ao meu amigo, o matemático Grossmann, cuja ajuda não apenas me poupou o esforço de estudar a literatura matemática correspondente, mas também me ajudou a buscar as equações de gravitação de campo”.

‘Toda a vida’

Nos anos 1920, a saúde de Grossmann começou a deteriorar-se devido à esclerose múltipla. Ele morreu em 1936, na Suíça.

Em sua carta de pêsames, Einstein escreveu para a esposa do amigo sobre suas recordações: “ele, um estudante modelo, e eu, desorganizado e sonhador”.

Einstein elogiou o fato de que o amigo sempre mantinha bom relacionamento com seus professores e entendia tudo facilmente, enquanto ele era distante e não muito popular. “Mas éramos bons amigos e nossas conversas regadas a um café gelado no Metrópole a cada poucas semanas são algumas das minhas recordações mais felizes.”

Quando eles se formaram, “de repente fiquei sozinho, enfrentando a vida sem poder fazer nada. Mas ele ficou ao meu lado e, através dele (e do seu pai), cheguei a [Friedrich] Haller no Escritório de Patentes alguns anos depois.”

Einstein prosseguiu afirmando que estar ali foi como uma espécie de “colete salva-vidas, sem o qual poderia não ter morrido, mas certamente teria me consumido intelectualmente”.

Ele relembrou “o febril trabalho conjunto sobre o formalismo da Teoria da Relatividade Geral. Não o completamos, pois me mudei para Berlim, onde continuei trabalhando por minha conta.”

Antes de encerrar, lamentou o impacto da doença do amigo. “Mas uma coisa é bonita. Fomos amigos e seguimos sendo amigos por toda a vida.”

– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62322584



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