Do que pode falar um psicanalista? A pergunta está acesa nas redes sociais e no contexto dos desdobramentos da psicanálise no Brasil, no contexto da covid, das eleições vindouras e de modo mais ou menos permanente quando se considera a participação dos psicanalistas em redes sociais e no espaço público em geral. A pergunta faz cócegas no identitarismo psicanalítico.
Como não há instituição, ordem corporativa ou conselho que fale por todos, cada um fala por si, tendo os textos —que aliás são variados e extensos— como referência comum e pública para o debate.
Por isso proliferam críticas que advogam que psicanalistas deveriam se abster de participar do debate público, porque isso afetaria a neutralidade dos tratamentos que conduzem, ou se mostrar isentos em matéria política ou de opinião.
Há vários riscos aqui: psicologização de questões coletivas, ocultamento de contradições sociais, uso indevido de conceitos e diagnósticos.
Mas isso nos remeteria mais a qualidade dos argumentos e da exposição, do que ao impedimento da tarefa.
Aqui a resposta deveria ser a crítica circunstanciada e não o veto.
Certa vez Freud foi criticado por opinar sobre demasiados assuntos, da arte à religião, da cultura à educação. Respondeu dizendo chistosamente: “eu não falo do clima, e o clima é uma coisa muito importante”.
Argumentar sobre o que pode ou não ser dito, tem um indisfarçável sabor normativo, quando não captura a sensibilidade dos que sentem que estão falando em meu nome, sem minha permissão.
Muitos são contra, mas não estão dispostos a falar por si mesmos para contestar publicamente.
Outros estão dispostos a limitar os temas: pode falar disso, mas não daquilo.
Outros ainda aceitam a “colher” psicanalítica desde que ela sirva para aspergir tolice ou preconceito.
Por razões normativas, narcísicas ou epistemológicas muitos restringem tais intervenções à condição de especialistas ou técnicos em saberes correlatos, como saúde mental, psicopatologia e psicologia.
Nem tudo que um psicanalista diz ou faz, em público ou em privado, ele o faz referido à psicanálise.
Não acredito num único “modo analítico” de dizer, de se vestir, de manifestar sentimentos e predileções, ainda que perceba modos não analíticos quando os encontro, aliás fartamente na internet. Em geral não preciso invocar a ética ou a etiqueta da psicanálise, é só mau gosto identitário ou tolice sem argumentos mesmo.
Muitos psicanalistas eram também professores como Freud, médicos engajados em situações sociais como Winnicott ou Dolto, integrantes da política de Estado como Ferenczi ou militantes de causas sociais como Otto Fenichel ou Sabina Spielrein.
Eram também o que se poderia chamar de intelectuais, função que varia muito no tempo e que respeita as condições locais de seu exercício, mas que entendo responder a três critérios: participação no debate público, não entrar em desacordo com a ética, com epistemologia da psicanálise e a capacidade de falar fora de lugar, ou seja, para além da figura do especialista ou professor que domina uma área ou um tema.
Quando psicanalistas falam em público não falam como delegados de instituições e comunidades às quais pertencem, mas estão indiretamente regulados por elas.
Por vezes aqueles que acusam a psicanálise de elitismo, hierarquias piramidais e linguajar hermético são os mesmos que se refugiam em pseudônimos, memes e cancelamentos. Duas atitudes que evitam “pagar a conta” pela própria palavra empenhada. Convivem assim, pelos melhores e piores motivos, atração e temor pelo espaço público.
O espaço público é necessariamente político, nele a autoridade vertical do especialista tensiona-se com autoridade horizontal, daquele que fala para todos e com todos. Daí que seja possível falar de tudo que merece nosso interesse, traduzindo as noções de bem comum (Aristóteles), interesse público (Hobbes e Locke) ou vontade geral (Rousseau).
Adicionalmente é deste mesmo espaço que esperamos alguma contenção e crítica contra as temíveis inconsequências, abusos e manipulações indesejáveis que sua versão digital criou.
A famosa exclusão de Lacan pela Associação Psicanalítica Internacional não deixou de ter que ver com a maneira como este ocupava o espaço público. Seminários públicos, onde seus analisantes conviviam com um público cada vez maior e cada vez mais diversos de médicos, filósofos, religiosos, críticos literários, marxistas, feministas e curiosos aleatórios em geral.
Sem falar na publicação de artigos explicitamente críticos sobre a comunidade e as instituições psicanalíticas de sua época. Acusado de dialogar com autores e ideias que nada tinham que ver com o debate interno da psicanálise, ele acabou sendo reconhecido como um intelectual público.
Mas a França dos anos 1960 não é o Brasil de 2020.
Um dos traços da mutação brasileira da psicanálise, hoje reconhecida fartamente em outros países é a participação no espaço público. É o chamado “analista cidadão” que dispensa as credenciais de intelectual ou especialista, para participar da conversa da polis ou da civitas.
Mas isso significaria reproduzir a visão de mundo psicanalítica ao falar de tudo? Freud tem uma observação a respeito:
Entendo que uma visão de mundo é uma construção intelectual que soluciona de maneira unitária todos os problemas de nossa existência a partir de uma hipótese suprema: dentro dela, portanto, nenhuma questão permanece aberta e tudo que merece nosso interesse tem seu lugar preciso.” [1]
Chamo atenção aqui para a “unidade desta hipótese suprema”, porque nada impede que a psicanálise seja posta exatamente neste lugar.
Ora, o antídoto óbvio aqui está na combinação com outros discursos. Evitar que tudo o que se diz, se murmura ou se suspira esteja referido à psicanálise.
O segundo antídoto é cuidar para que nem “tudo que merece interesse tem seu lugar preciso”, ou seja, “falar fora de lugar” e “desarrumar lugares”.
Terceiro antídoto: apresentar de forma leal e transparentes certas inclinações e os objetivos do que se pretende, justamente para evitar manipulação comercial, autopromoção e sugestão em benefício próprio.
Muitos terapeutas empregam esta nova versão digital do espaço público para tomar posições e criar imagens que os favoreçam na captação de pacientes, na expansão de legitimidade comunitária ou meramente na expansão de suas virtudes narcísicas.
Surgem também posições agudas, extremadas, exageradamente estridentes feitas apenas para criar foco sobre si mesmo, e daí extrair os mesmos benefícios privados que se está a denunciar.
Para lidar com esta possibilidade bastaria voltar ao mesmo texto de Freud:
Se este é o caráter de uma cosmovisão, a resposta é fácil para a psicanálise. Como ciência especial, um ramo da psicologia, – a psicologia do profundo ou psicologia do inconsciente – é por completo inapta para formar uma Weltanschauung própria, deve aceitar a da ciência.” [2]
Ou seja, esta é a forma como Freud entendia a participação e a justificação da psicanálise numa visão de mundo que a precede e na qual ela se inclui: a da ciência.
Isso não significa que ela mesma seja uma ciência, mas que se inclui em sua visão de mundo baseada no uso livre da razão.
Freud opunha esta visão de mundo à cosmovisão tanto das religiões instituídas (“a luta do espírito científico contra a visão de mundo religiosa não terminou ” [3]) quanto do que ele chamava de animismo [4] apoiando-se para tanto no projeto de uma educação laica e universalista expressa pelo filósofo Imanuel Kant.
Lacan parece caminhar na mesma direção ao lançar na contracapa de seu livro fundamental, os “Escritos”, a seguinte declaração:
É preciso haver lido essa coletânea, e em toda a sua extensão, para perceber que nela prossegue um único debate, sempre o mesmo, o qual, mesmo parecendo marcar época, pode ser visto como o debate das luzes. (…) O advento não pode se produzir a partir daí senão realmente em um lugar que no presente os psicanalistas ocupam.” [5]
O debate das luzes é o debate do iluminismo, da Aufklärung, da emancipação e da maioridade da razão, contra o obscurantismo.
É o debate no qual estão Descartes, Kant e a ciência à época de Freud.
Quase todos os termos da equação freudiana sobre a visão de mundo se transformaram: a ciência não é mais a ciência do século 19, a psicologia não é mais uma disciplina incipiente, a própria psicanálise passou a fazer parte do mundo que pretendia criticar, a própria ideia de visão unitária de mundo parece caducar, como resíduo romântico da forma de pensar.
Mas em linhas gerais o programa pode ser mantido: a psicanálise pertence à tradição da crítica do pensamento, ela não se contenta com a metafísica tradicional, nem é uma leitura universal de todas as coisas do mundo, muito menos a partir de uma única ciência.
Aqueles psicanalistas que se contentam com uma única hipótese na cabeça, que querem morar nos “piques” das discussões políticas ou que abusam do excludente de ilicitude opinativo deveriam voltar para o século 19, em vez de imaginar que já estão nos século 21.
REFERÊNCIAS
[1] Freud, S. (1932) Novas Conferências Introdutórias a Psicanálise. Em torno de uma Visão de Mundo (Weltanschaung). Sigmund Freud Obras Completas, V.XXII. Amorrortu: Buenos Aires, 1988, p. 146.
[2] Idem.
[3] Idem: 156.
[4] Idem: 152.
[5] Lacan, J. (1966) Escritos. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1998.