Em 4 de julho de 2012, os pesquisadores do Grande Colisor de Hádrons anunciaram ter encontrado a última peça de um quebra-cabeças que estava incompleto havia 48 anos.
O Grande Colisor de Hádrons é a maior e mais complexa máquina já construída. A “peça” que ele descobriu é uma partícula do mundo subatômico e um dos blocos elementares que compõem tudo o que conhecemos.
Essa peça é chamada de bóson de Higgs, e a comprovação da sua existência é uma das maiores conquistas da física moderna.
Com a descoberta do bóson de Higgs, se completou o modelo-padrão, que descreve o conjunto de partículas elementares que compõem tudo o que conhecemos e as forças que interagem entre elas para que funcionem como peças de blocos de montar que se juntam.
A façanha do Grande Colisor de Hádrons foi uma aventura que começou em 1964, quando o físico britânico Peter Higgs publicou uma teoria que previa que o bóson deveria existir.
Segundo o próprio Higgs, essa foi a “única boa ideia” que ele teve em sua vida, e a princípio achou que sua teoria não era nada além de cálculos inúteis.
O que aconteceu, no entanto, é que a partícula sobre a qual ele teorizou – e que o Grande Colisor provou existir – revolucionou a compreensão do nosso Universo.
Essa “única boa ideia” lhe rendeu o Nobel de Física em 2013 e, paradoxalmente, arruinou sua vida, segundo ele mesmo conta.
Em 2022, completam-se dez anos desde que o Grande Colisor detectou o bóson de Higgs.
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com dois especialistas a respeito de como essa partícula tem ajudado há uma década a responder duas grandes perguntas da humanidade: de onde viemos e do que somos feitos?
Modelo-padrão
Durante muito tempo, se pensou que os átomos eram as partículas mais elementares de tudo o que está feito.
Depois, aprendemos que esses átomos em realidade estão feitos de partículas ainda menores: prótons e neutrons que formam o núcleo do átomo e os elétrons que orbitam esse núcleo.
Mas hoje sabemos que até esses prótons e neutrons podem se dividir em partículas ainda menores.
No total, foram detectadas 17 partículas fundamentais que, ao interagirem entre si por influências de forças, compõem todo o Universo que conhecemos.
Esse conjunto de 17 partículas e forças é conhecido como modelo-padrão.
Essas partículas se dividem em duas grandes famílias: os férmions e bósons.
Férmions – são os tijolos que formam o Universo – como peças de blocos de montar que, a depender de como sejam combinadas, formam átomos diferentes. Há 12 férmions, divididos em seis quarks e seis léptons. Em outras palavras: toda a matéria que conhecemos é feita de combinações de quarks e léptons. Ou, de modo mais geral, tudo o que vemos é feito de férmions.
Bósons – são as partículas que transportam as forças que fazem os férmions interagirem. No total são cinco tipos de bósons, cada um deles transportando as forças fundamentais que fazem a matéria interagir:
1 – O glúon, que transporta a força forte que mantém os quarks unidos
2 e 3 – O bóson W e o bóson Z, que levam a força fraca, que faz com que um núcleo de átomo se desintegre e forme outro átomo
4 – Os fótons, que levam a força eletromagnética.
Também há a força mais famosa de todas, a gravidade.
Acontece que a gravidade, em nível subatômico, é tão fraca que sua influência pode ser em grande parte ignorada – por isso, ela não é parte do modelo-padrão.
Dessa forma, temos o modelo-padrão quase completo: a família de férmions interage com a família de bósons para formar o Universo.
Mas ainda falta incluirmos o quinto bóson.
O que é o bóson de Higgs?
Já vimos 12 férmions e 4 bósons, ou seja, 16 das 17 peças do modelo-padrão.
Falta apenas a peça que completa o modelo: o bóson de Higgs.
Ele é necessário para responder uma pergunta-chave: de onde partículas como quarks e léptons obtêm sua massa?
A resposta é o chamado campo de Higgs, um entorno invisível que permeia todo o Universo e que impregna de massa as partículas que navegam nele.
Nesse campo de Higgs estão os bósons de Higgs, que espalham massa nas partículas que formam a matéria.
“O descobrimento do bóson de Higgs nos mostrou que existe uma coisa estranha em que estamos todos imersos, e que é conhecido como campo de Higgs”, diz à BBC News Mundo Frank Close, professor emérito de Física Teórica na Universidade de Oxford.
“Assim como os peixes necessitam estar imersos na água, nós precisamos do campo de Higgs”, diz Close, autor do livro (em tradução literal) Elusivo: Como Peter Higgs resolveu o mistério da massa.
Em 1964, Peter Higgs foi um dos primeiros a teorizar a existência desse campo e o primeiro a prever que deveria existir uma partícula associada a esse campo.
Mas foi só em 2012, graças ao Grande Colisor de Hádrons, que foi possível observar que essa partícula, hoje chamada de bóson de Higgs, existe para além da teoria.
Por que essa descoberta foi tão importante?
Para Saúl Noé Ramos Sánchez, pesquisador do Instituto de Física da Universidade Nacional Autônoma do México, o marco do descobrimento do bóson de Higgs pode ser descrito em três pontos:
1. Isso nos permitiu um conhecimento mais completo das partículas elementares das quais somos formados
“Todas as partículas que formam os nossos átomos foram finalmente compreendidas, incluindo suas relações com outras partículas”, diz Ramos Sánchez.
2. Foi encontrada uma partícula diferente de todas as demais
O bosón de Higgs não se parece com eletrons nem prótons e é responsável por certas interações que levam ao conhecimento da massa dessas partículas.
Ou seja, o bóson de Higgs é a peça-chave que nos diz por que as demais partículas são como são.
3. Logrou-se a teoria mais precisa possível até o momento
Ramos Sánchez argumenta que o modelo-padrão é “a teoria mais precisa que a humanidade tem” até o momento.
Close tem opinião parecida: “com algumas pequenas exceções, ela explica muito bem tudo o que vemos”, diz o professor.
O futuro
Os especialistas concordam que, depois do histórico 4 de julho de 2012, não houve até o momento nenhuma outra grande descoberta ligada à física de partículas.
Alguns experimentos recentes no Grande Colisor de Hádrons e no Fermilab, outro acelerador de partículas, este localizado nos EUA, dão sinais do que poderia ser uma nova partícula ou uma nova força, até agora desconhecida.
Caso isso se confirme, haverá questionamentos ao modelo-padrão.
No entanto, os resultados desses experimentos ainda são inconclusivos.
“Depois da descoberta do bóson de Higgs, o modelo-padrão está mais sólido do que qualquer outra coisa”, diz Ramos Sánchez.
Mas também existem várias perguntas que o modelo-padrão não é capaz de responder.
Ele não explica, por exemplo, o que é a matéria escura, um misterioso componente que compõe 27% do Universo.
Tampouco explica por que no Universo há mais matéria do que antimatéria, ou por que a expansão do cosmos está se acelerando.
Outro grande vazio é que ele não consegue incorporar a força da gravidade.
Para vários desses enigmas foram criadas teorias, mas ainda não há uma resposta contundente.
Nada disso, porém, quer dizer que o modelo-padrão esteja equivocado, dizem os especialistas.
“Quem dera ele estivesse em crise”, diz Close. “Se estivesse em crise, isso nos daria as pistas para construir uma grande teoria que explicasse tudo isso. O ‘problema’ do modelo-padrão é que ele funciona muito bem. Sabemos que não é a teoria definitiva, mas sim uma descrição completa de tudo a que temos acesso até agora.”
Truque matemático
Segundo Close, que entrevistou Higgs para escrever sua biografia, o físico sustenta que o bóson “é a única boa ideia” que ele já teve.
De fato, a princípio, Higgs pensava que seu descobrimento seria “completamente inútil”, conta Close.
“Ele achava que tinha feito um simples truque matemático com o que em teoria poderia dar massa aos fótons.”
Além disso, Higgs não foi particularmente prolífico.
Escreveu só 12 estudos em sua carreira e, deles, apenas três – relacionados ao bóson de Higgs – tiveram alguma relevância, segundo Close.
“Ele tampouco seguiu trabalhando nisso, não fez mais praticamente nada nesse sentido”, explica o professor. Foram outras pessoas que, a partir de suas ideias, agregaram conhecimento até a construção do Grande Colisor.
“Então pode ser que o bóson tenha sido a única boa ideia de Higgs, mas eu me pergunto: quantas ideias realmente boas qualquer um de nós tem?”, conclui Close.
Além do papel
Em 1964, Higgs não era o único trabalhando na ideia da existência do que hoje se chama de campo de Higgs.
De modo simultâneo, outros pesquisadores apresentavam estudos na mesma direção.
Higgs, no entanto, foi o único a perceber que sua ideia matemática era verdadeira, ou seja, de que realmente está presenta na natureza e não era só um truque para resolver problemas teóricos.
“Então se esse campo é real, deveríamos ser capazes de detectá-lo, e a forma de fazer isso deveria ser o que chamamos hoje de bóson de Higgs”, explica Close.
“Higgs foi o único que notou isso, por isso o bóson foi batizado corretamente com seu nome”.
“Arruinou a minha vida”
Depois que o Grande Colisor de Hádrons confirmou a existência do bóson de Higgs em 2012, ficou quase óbvio para a comunidade científica de que Higgs levaria o Nobel de Física.
Ele próprio sabia que era favorito ao prêmio, então, em 8 de outubro de 2013, quando o grande anúncio seria feito, sua decisão foi… desaparecer.
Higgs saiu de casa, tomou um ônibus e se refugiou em um bar para tomar uma cerveja.
Em uma de suas entrevistas, Close perguntou a Higgs qual havia sido o impacto de ganhar um Nobel.
A resposta deixou-o surpreso: Higgs disse que o prêmio “arruinou a minha vida”.
“Acabou com minha existência relativamente pacífica. Eu não gosto desse tipo de publicidade, meu estilo é trabalhar isolado e, ocasionalmente, ter uma ideia brilhante”, explicou o físico.
Isso explica por que Higgs se isolou no dia do anúncio do prêmio – embora a estratégia tenha tido o efeito contrário ao desejado.
“O que é mais atraente para os jornalistas?”, questiona Close. “Um homem que ganha o Nobel e fica disponível para entrevistas, ou alguém que ganha o Nobel e desaparece?”
Em 2022, Peter Higgs tem 93 anos, é aposentado e vive em Edimburgo, na Escócia. Não usa internet e mora em um prédio sem elevador, o que requer que desça 84 degraus de escada para chegar à rua.
Para Close, isso mostra o quão elusivo é Peter Higgs, tão elusivo quanto o famoso bóson que passou anos escondido e, quando se deixou ver, mudou para sempre o entendimento do Universo.
– Este texto foi originalmente publicado em www.bbc.com/portuguese/geral-62021022