Shozo Kawamoto é uma daquelas pessoas que através da narrativa de sua história nos ensina a costurar e a remendar a alma dilacerada pela perda e pela insuportável ausência dos outros. Ele aprendeu a estancar uma ferida aberta, transformando-as em cicatrizes de lembrança.
Diante do horror dois são os caminhos mais comuns: aumentar nossa capacidade de reconhecer o sofrimento dos outros ou o embrutecimento anestésico de si. Shozo me ensinou que as verdadeiras rugas da vida, não devem desaparecer, porque marcam não apenas uma experiência de vida, mas o vergão remendado do abismo que habita todos nós.
Agora que ele partiu, deixou a tarefa de continuarmos costurando. Permitir que suas lembranças se entrelacem de forma sensível com as nossas e assim jamais sejam esquecidas.
Que seu legado prospere e toque delicadamente as almas daqueles que o escutam, e os amarrem com a linha mais resistente: aquela do sofrimento compartilhado. Compaixão, empatia ou solidariedade, capaz de vencer a frieza indiferente.
Conheci Kawamoto em janeiro de 2018 enquanto estava na cidade de Hiroshima realizando entrevistas com hibakushas para minha pesquisa de doutorado. O termo japonês significa sobrevivente do bombardeio atômico.
Logo de primeira, Kawamoto se prontificou a me encontrar quantas vezes fossem necessárias para que sua memória pudesse ser minuciosamente registrada e servir de apelo à paz. Ao longo de vários encontros que tivemos, Kawamoto me contou suas mais íntimas lembranças acerca de antes, durante e de depois da guerra.
Ele tinha apenas 10 anos em 6 de agosto de 1945, dia em que a primeira bomba atômica explodiu no céu claro de verão de Hiroshima. Somente naquele ano 145 mil pessoas dos seus 300 mil habitantes morreram.
A família de Kawamoto morava a 350 metros do marco zero, dentro da área completamente destruída pelas ondas de pressão e calor liberadas pela explosão. Kawamoto havia sido evacuado para o interior juntamente com outras crianças por ordem do governo japonês.
Três dias depois sua irmã mais velha veio buscá-lo e ele a recebeu entre angústia e alívio. Ela trabalhava a 2 km do marco zero e foi soterrada pelo desabamento do prédio. Incêndios tomaram o centro de Hiroshima, quando ela chegou ao que antes era sua casa. Só havia restos queimando.
Ao remexer nos entulhos, identificou três restos mortais, de sua mãe e dos dois irmãos mais novos. Ajoelhou-se em uma prece ouvindo as vozes de outros vizinhos. Suplica por mais informações e descobre que sua mãe escapara dos escombros a tempo de assistir a casa queimar com seus dois filhos dentro. O pai e outra irmã trabalhavam muito próximos do marco zero e teriam desaparecido sem deixar rastros.
Kawamoto recorda que após o final guerra grande parte da estação de Hiroshima foi rapidamente reconstruída. Ali ele tinha um pequeno quarto, onde dividia a pequena marmita diariamente com sua irmã. Ali ele encontrava todo dia os órfãos que a bomba deixou para trás, agradecendo sempre, silenciosamente, por ter uma irmã.
Via os órfãos revirando o lixo à procura de comida, bebendo água turva de poças no chão da rua, brigando como animais por migalhas de pão. Nunca esqueceu a imagem dessas crianças chupando pedras para enganarem o estômago, comendo jornal molhado na água suja, morrendo de fome e tendo seus corpos cremados junto com o lixo.
Seis meses depois da explosão, sob efeitos da radiação, sua irmã morreu e Kawamoto foi levado para um orfanato numa cidade próxima. Foi dado para o dono de uma grande companhia de shoyu, para quem trabalhava de domingo a domingo, 18 horas por dia em troca de comida e um lugar para dormir.
Quando tinha 23 anos, se apaixonou por uma moça, mas a família dela não permitiu o casamento por ele ser um hibakusha e, portanto, ter a doença da bomba. Desolado, decide retornar a Hiroshima, onde se junta ao grupo mafioso yakuza.
Seguem-se anos de violência e morte. Novamente corpos de colegas sendo queimados com e como lixo. Até o ponto que ele decide que não quer morrer em desonra na mesma cidade em que a família morreu honradamente.
Decide, mais uma vez, fugir com a roupa do corpo. Decide nunca casar ou ter filhos. Decide nunca mais falar de sua história ou de suas origens.
Kawamoto vive assim até 2005, quando um colega de escola o convida para um evento sobre 60 anos da explosão atômica. Brinco com Kawamoto dizendo que o amigo foi mais eficiente que o yakuza. Ele diz que era “cão de briga” da máfia, “baixo escalão” e que ninguém iria gastar tempo ou dinheiro para ir atrás dele.
O amigo só conseguiu localizá-lo porque na década de noventa os cadastros foram informatizados e ele precisou refazer seus registros.
Algo transformador aconteceu quando ele percebe que ter sobrevivido, ser lembrado e ter uma história para contar significava algo.
A explosão apagou tudo: documentos, fotografias, objetos que provavam a existência das pessoas e famílias. Sobraram apenas as pessoas e suas memórias. Sem elas, os outros, os que se foram, os que comiam pedras devido à fome e os que trabalhavam como escravos jamais seriam lembrados. Suas existências seriam como se não tivessem acontecido
O reencontro do antigo amigo o fez perceber que ele existia para alguém, além de si mesmo:
Pude viver para saber que alguém lembrou de mim. Não achei que isso seria possível.”
Depois disso pode retornar a Hiroshima em 2006. Ficou surpreso com a cidade moderna que encontrara. Visitou o Museu Memorial da Paz de Hiroshima e ficou extremamente indignado ao perceber que a única menção sobre os órfãos era uma fotografia com uma breve legenda.
Decidiu então que dedicaria o resto da vida para contar a história dos órfãos de Hiroshima.
Em junho de 2022, aos 88 anos, depois de 16 anos trabalhando como voluntário no Museu Memorial da Paz de Hiroshima, Shozo Kawamoto descansou. Deixou para trás a tarefa de continuarmos costurando seu legado.
Uma semana antes de nos despedirmos, ele disse que queria me dar um presente, um presente para mim e para as pessoas e instituições brasileiras. Recebi assim duas sacolinhas: uma com dobraduras de tsurus e uma com aviõezinhos feitos de papel, guiados por pequenos tsurus.
O tsuru é um legado deixado pela sobrevivente Sadako Sassaki, que tinha apenas dois anos no dia da explosão atômica em Hiroshima. Aos 12 anos foi diagnosticada com leucemia e acreditava que se dobrasse mil tsurus ela não morreria. Aqueles que sobreviveram a ela continuarão dobrando estes pequenos origamis de papel, em forma de cisne, em nome dela.
Um ato de solidariedade, resistência e responsabilidade social para que nenhuma criança no mundo venha a morrer de novo daquela forma.
O tsuru representa a esperança de um mundo sem guerras, no qual as crianças possam ser crianças, e que possam desejar mais do que sobreviver.
Kawamoto diz que durante a guerra não havia brinquedos e o papel era precioso. De vez em quando sua mãe conseguia algumas folhas de papel escondida e dobrava aviões para os filhos brincarem. Pedia que os escondessem para evitar repreensões.
O avião de papel é o legado da sua mãe. Uma mulher no meio da guerra fez brinquedos para os filhos, porque não esqueceu que crianças precisavam brincar. Quando foi necessário, jogou-se no fogo para que dois filhos não morressem sozinhos. Os aviões de papel pilotados por tsurus eram uma forma de unir o legado tão singular de sua própria mãe com o legado coletivo de Sadako.
Cristiane Nakagawa não conseguiu rever Shozo Kawamoto. Sua pesquisa de pós-doutorado previa um reencontro e uma nova história.
Lutamos com todas as forças para que o financiamento de pesquisa permitisse isso, mas esta segunda história jamais será contada.
A história de Shozo nos ajuda a entender como nossa própria população brasileira, tão distante da cultura japonesa, pode aprender algo sobre a arte da sobrevivência, em meio ao extermínio indígena, periférico, negro que vivemos.
A bomba atômica é também aqui e agora, desde que consigamos aprender como ela devasta vidas e como vidas se reconstroem por meio da memória e do fio condutor do sofrimento.
Muitos pensam que as pesquisas em ciências humanas podem ser indefinidamente adiadas, que seu financiamento é menos importante do que as áreas que rendem retorno social, em termos de tecnologia e inovação.
Outros sofreram durante o governo Bolsonaro com cortes que fizeram perder produtos biológicos, investigações longitudinais ou estudos demográficos que dependem da continuidade de anos e décadas.
Há espécies em extinção que não têm tempo para esperar por sua própria sorte administrativa.
Diminuir o investimento em pesquisa científica pode parecer algo fortuito, entre tantas outras demandas sociais.
Contudo, em meio ao retrocesso vivido nestes últimos quatro anos, ainda há espaço para lembrar que há coisas irreversíveis, que o tempo dos cortes, da austeridade e da ineficiência pode ser letal, para o tempo real da vida e da morte.
É neste tempo que acontece a pesquisa real, onde podemos pensar e realizar as transformações que realmente queremos.
* Colaborou Cristiane Nakagawa, pós-doutoranda do Instituto de Psicologia da USP, especialista em sobreviventes dos ataques nucleares ao Japão.