Tirada há 70 anos, a foto que foi essencial para decifrar a estrutura do DNA simboliza o talento de uma jovem cientista alvo do que muitos consideram uma injustiça ‘imperdoável’.
Nos arquivos da Universidade King’s College London, no Reino Unido, está guardado o original de uma das fotos mais famosas da história da ciência.
A pequena chapa mede apenas cerca de 10 centímetros de cada lado, mas seu legado é gigantesco.
Não foi apenas uma peça-chave em uma das maiores descobertas do século 20. Também simboliza o talento e a dedicação de uma jovem cientista alvo do que muitos consideram uma injustiça “imperdoável”.
A química britânica Rosalind Franklin tinha 31 anos quando tirou, em 6 de maio de 1952, a célebre foto junto ao estudante de doutorado Raymond Gosling.
A imagem, que ela chamou de Foto 51, foi essencial para decifrar a estrutura do DNA, a molécula que transmite a informação genética e é responsável pela continuidade da vida.
Em 1962, a descoberta rendeu o Prêmio Nobel de Medicina a três cientistas: o geneticista americano James Watson e os físicos britânicos Francis Crick e Maurice Wilkins.
Franklin havia morrido quatro anos antes, sem saber o quão crucial fora sua contribuição para a descoberta.
Setenta anos depois da famosa Foto 51, a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, relembra a história por trás da imagem, por que é tão importante e qual é seu legado.
‘Uma inteligência alarmante’
Franklin nasceu em 1920 em meio a uma família de banqueiros em Londres.
E, desde criança, “fazia cálculos matemáticos para se divertir” e tinha “uma inteligência alarmante”, segundo lembrou uma tia. O relato é da escritora Brenda Maddox, falecida em 2019 e cuja biografia de Franklin continua sendo uma das grandes referências sobre a vida da cientista.
Após fazer doutorado em física e química pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, Franklin logo ganhou destaque por sua pesquisa sobre a estrutura física das moléculas.
Seus estudos sobre carvão foram usados durante a Segunda Guerra Mundial na produção de máscaras de gás.
A técnica na qual Franklin havia se especializado era a cristalografia de raios X.
“Esta técnica foi aplicada antes da Segunda Guerra Mundial para determinar a estrutura de rochas e minerais”, explica à BBC News Mundo Miguel García-Sancho, professor e pesquisador de história da ciência da Universidade de Edimburgo, na Escócia.
“Mas depois da guerra houve muito interesse em usar as técnicas da física em aspectos mais relacionados à vida, e foi aí que começou a ser usada para determinar a estrutura das moléculas biológicas.”
Como se obtém uma imagem com cristalografia de raios X?
O próprio Gosling, que faleceu em 2015, explicou em um documentário da rádio pública australiana:
“Não é uma fotografia no sentido de que você coloca sua mão e obtém uma radiografia mostrando seus ossos. Aqui o que você faz é pegar um espécime cristalino e colocá-lo no caminho de um feixe de raios X.”
“E o que acontece se chama difração. O raio se dispersa em vários ângulos, de acordo com a estrutura molecular do cristal.”
“Rodeando o cristal com um filme é possível então capturar essa difração em manchas com diferentes posições e intensidades. E depois usando a matemática você pode deduzir a partir desse padrão de difração qual era a estrutura real da molécula.”
Para obter a Foto 51, Franklin teve que aperfeiçoar os instrumentos e realizar uma exposição de 100 horas.
“Tecnicamente era muito complicado e, na verdade, havia pouca gente que dominava como ela esta técnica”, diz García-Sancho.
“E você precisava ter um conhecimento matemático muito avançado para depois poder interpretar as fotos.”
Em contrapartida, ao ajustar continuamente o equipamento, Franklin expôs seu corpo à radiação, um dos fatores que anos depois pode ter contribuído para o câncer que lhe custou a vida.
Choque de personalidade
Franklin aperfeiçoou sua técnica por quatro anos em um laboratório de prestígio em Paris, na França, antes de voltar a Londres, onde seus conhecimentos em cristalografia renderam um convite para trabalhar no King’s College.
De cara, um mal-entendido contribuiu para o que acabaria sendo um ambiente insuportável para a cientista.
O diretor do laboratório de biofísica do King’s College, JT Randall, foi quem contratou Franklin.
“E disse a ela que trabalharia comigo para descobrir a estrutura do DNA”, relatou Gosling.
“O que ele não disse a ela foi que Maurice Wilkins estava trabalhando nesse tema.”
Wilkins, que estava viajando quando Franklin chegou, presumiu que ela seria sua assistente. Franklin, por sua vez, “obteve de Randall a impressão de que a estrutura do DNA era problema seu”.
Ao mal-entendido se somou um choque visceral de personalidades.
Gosling lembra que, quando Franklin chegou ao King’s College, ele “a admirava”.
“Ela tinha uma personalidade forte e era uma cientista segura de si mesma por seus trabalhos anteriores”.
“Seu poder de concentração era extraordinário, e conseguia realizar em um dia de trabalho o que outros levavam vários dias para terminar.”
A doutora em biologia Carolina Martínez Pulido escreveu vários artigos e livros sobre o papel das mulheres nas ciências biológicas e é colaboradora do site mujeresconciencia.com. Para ela, “Franklin e Wilkins sentiram uma antipatia mútua desde o início”.
“Uma razão para estas divergências também pode estar no fato de que Franklin era mulher e, por isso, Wilkins se sentia incapaz de aceitá-la como colega e discutir abertamente com ela.”
‘Um roubo e uma traição’
Talvez um dos episódios mais conhecidos da história da Foto 51 seja que Wilkins a mostrou a Watson sem o conhecimento de Franklin.
“Este fato foi descrito como um roubo e uma verdadeira traição em relação à pesquisadora. Algo de que ela nunca teve conhecimento”, diz Martínez Pulido.
Watson e Crick trabalhavam no Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge e corriam contra o tempo para decifrar a estrutura do DNA antes de seu principal concorrente, Linus Pauling, nos Estados Unidos.
O próprio Watson relatou em seu livro A dupla hélice: Como descobri a estrutura do DNA sua reação ao ver a foto 51: “Meu queixo caiu e meu coração começou a acelerar”.
Para Martínez Pulido, Watson imediatamente “compreendeu que a simplicidade do diagrama, com uma cruz preta dominando a fotografia, era a prova de que a molécula tinha uma estrutura helicoidal”.
Outra versão afirma que Watson, que não entendia de cristalografia, desenhou para Crick o que tinha visto, e foi Crick quem percebeu imediatamente que se tratava de uma hélice.
As duas formas de DNA
A nitidez sem precedentes da Foto 51 foi possível graças a uma descoberta chave de Franklin: havia duas formas de DNA e, para distingui-las e obter uma imagem clara, era essencial controlar a umidade.
“Franklin aperfeiçoou técnicas de hidratação no King’s College que permitiram a ela obter fibras de DNA com alta cristalinidade”, explica Martínez Pulido.
“Com seu trabalho, ela comprovou a existência da chamada forma A do DNA, que foi alcançada em uma umidade relativa de cerca de 75%. Além disso, ela mostrou que em níveis ainda mais altos de umidade acontecia uma mudança estrutural bem definida que levava a um novo tipo de diagrama, a chamada forma B, que é como se encontra a molécula normalmente em organismos vivos.
A falta de clareza nas fotos de outros pesquisadores se devia à mistura de ambas as formas, o que dificultava a interpretação das imagens.
“Franklin optou por estudar as duas formas separadamente, e isso foi um grande acerto porque conseguiu uma série de dados que lançaram luz sobre a possível arquitetura da molécula”.
“O grau de hidratação da molécula foi fundamental para obter uma imagem nítida da estrutura do DNA, e ninguém havia reparado nisso antes de Rosalind Franklin.”
Uma das imagens da forma B era justamente a famosa Foto 51 que, segundo Gosling, correspondia “lindamente” à estrutura de hélice.
A outra peça chave do quebra-cabeça
Watson e Crick também tiveram acesso a um relatório crucial no qual Franklin analisava seus dados e incluía medições de parâmetros na Foto 51.
JT Randall, do King’s College, havia solicitado aos pesquisadores em seu laboratório um resumo de seu trabalho tendo em vista a visita de um comitê do Conselho de Pesquisa Médica do Reino Unido (MRC, na sigla em inglês).
Um dos membros do comitê que recebeu o relatório foi Max Perutz, um jovem cristalógrafo do Laboratório Cavendish em Cambridge, que passou o relatório para Watson e Crick.
Perutz viria a afirmar posteriormente que não viu nenhum problema em fazer isso porque “não estava marcado como confidencial”.
Aaron Klug, Prêmio Nobel de Medicina com quem Franklin mais tarde colaboraria, observou em um documentário na PBS, a rede de televisão pública americana: “O relatório para o MRC continha os dados de Franklin… todos os parâmetros e sobretudo a simetria. Foi a simetria que indicou a Crick que as duas cadeias da molécula corriam em direções opostas”.
O especialista em biofísica Juan A. Subirana, pesquisador sênior e professor aposentado da Universidade Politécnica da Catalunha, explicou à BBC News Mundo que “por meio de cálculos detalhados, Franklin demonstrou que o DNA era uma hélice composta por duas moléculas, ou seja, era um dupla hélice”.
“Deve-se registrar que, na época em que estes trabalhos foram feitos, não existia computador, todos os cálculos eram feitos com calculadoras manuais e régua de cálculo”.
Poderiam ter feito isso sem ela?
García-Sancho afirma que Watson e Crick tinham grande habilidade para interpretar dados e formular hipóteses.
“Acho que eles tiveram a criatividade de oferecer uma interpretação da fotografia em que a estrutura física da dupla hélice era quimicamente possível.”
Mas o historiador acredita que sem a foto e os dados de Franklin, Watson e Crick não poderiam ter publicado seu famoso estudo em 1953.
“Eles não tinham nenhum banco de dados físico com o qual pudessem considerar a estrutura de dupla hélice. Sem esta foto, sem o relatório e sem estes cálculos físicos para chegar ao modelo genérico de hélice do DNA, eles não poderiam ter feito o trabalho que fizeram.”
Martínez Pulido destaca que Franklin esteve muito perto de resolver o enigma da estrutura do DNA.
“A cientista interpretou que o esqueleto de açúcar-fosfato estava disposto para fora, em contato com a água, enquanto as bases nitrogenadas se projetavam para o interior e, mediante o estabelecimento de pontes de hidrogênio entre elas, poderiam manter as cadeias unidas. É evidente que esta era uma imagem quase correta, muito próxima daquela que seria a definitiva.”
O anúncio da descoberta
Watson e Crick publicaram seu famoso estudo de DNA na renomada revista científica Nature em 25 de abril de 1953.
A Nature publicou três estudos naquele dia: primeiro o de Watson e Crick, depois um de Wilkins e dois colegas e, por último, um estudo de Franklin e Gosling com dados experimentais.
Ao aparecer em terceiro lugar, a contribuição de Franklin e Gosling foi vista pelos observadores como uma confirmação, e não um elemento-chave da descoberta.
No primeiro estudo, em uma frase celebremente vaga, Watson e Crick observam: “Também fomos estimulados pelo conhecimento da natureza geral dos resultados e ideias experimentais não publicados” de Wilkins, Franklin e seus colegas.
Quando os artigos foram publicados na Nature, Rosalind Franklin já estava em outro laboratório de Londres, no Birkbeck College.
A cientista, segundo Maddox, queria sair do King’s College “o mais rápido possível” e refletiu: “Posso mudar de um palácio para um bairro humilde, mas tenho certeza que serei mais feliz”.
O silêncio no Nobel e os insultos de Watson
Em Birkbeck, Franklin se destacou por sua pesquisa sobre vírus, colaborou com Aaron Klug e descobriu que o vírus do mosaico do tabaco tinha uma organização e estrutura helicoidal.
A cientista continuou este trabalho até sua morte por câncer de ovário em 1958, aos 37 anos.
Quando a cerimônia de entrega do Prêmio Nobel foi realizada em 1962 — uma honraria que não é concedida postumamente —, nem Watson, nem Crick, nem Wilkins reconheceram em seus discursos a importância do trabalho de Franklin para a descoberta.
Ironicamente, a contribuição de Franklin poderia ter sido esquecida se não fosse por Watson.
No livro A dupla hélice, publicado em 1968, uma década após a morte de Franklin, Watson faz mais de 80 menções à cientista, “a quem chamávamos de Rosy pelas costas”.
Watson descreve Franklin como uma mulher agressiva “com atitudes bélicas”, que escondia seus dados e “que teve que ser colocada em seu lugar”.
Ele se refere, inclusive, à forma como a cientista se vestia e que “ela nunca usava batom para contrastar o cabelo preto”.
Mas também faz alusão à importância das “medições precisas” de Franklin.
E, em relação ao relatório para o MRC, revela: “Rosy, claro, não nos deu seus dados diretamente. Além disso, ninguém no King’s College sabia que estava em nossas mãos.”
Uma injustiça ‘imperdoável’
García-Sancho observa que a falta de reconhecimento de Franklin foi “uma injustiça enorme e escandalosa”.
Para Brenda Maddox, a maior injustiça contra Franklin não foi Wilkins mostrar a foto 51 para Watson, conforme afirmou ao documentário da rádio australiana.
Ela argumentou que, naquela época, Franklin estava saindo do King’s College — e foi Gosling quem deu a foto a Wilkins, que era seu superior.
Mas Maddox destacou outra grande injustiça.
Watson, Crick e Franklin mantiveram contato durante anos. Eles comentaram seu trabalho com vírus, e Franklin chegou a ficar na casa de Crick e sua esposa.
No entanto, “durante estes anos de colaboração amigável, nunca disseram a ela: ‘Rosalind, não poderíamos ter feito isso sem você’. Isso é o que acho imperdoável”.
O legado de Franklin e sua foto
O túmulo de Rosalind Franklin está localizado no cemitério judaico de Willesden, no noroeste de Londres. No epitáfio, não há menção ao seu trabalho sobre DNA, mas pode-se ler:
“Cientista. Suas pesquisas e descobertas sobre vírus continuam a beneficiar a humanidade.”
Lourdes Campos é especialista em cristalografia de raios X e biologia molecular da Universidade Politécnica da Catalunha. Para ela, “o principal legado que Rosalind Franklin nos deixou foi seu trabalho e seu exemplo”.
“O amor pela ciência e seu trabalho altruísta em benefício da humanidade foram seus principais motores para enfrentar todas as adversidades que surgiram”, afirma.
“Rosalind viveu em uma época e em um país onde tinha tudo contra ela, o ambiente que ela vivia nos laboratórios ingleses era muito duro, agora chamaríamos isso de bullying. Não a levavam em consideração, era como se não existisse, e ainda por cima zombavam dela. Poucas mulheres suportariam esse tratamento, nem naquela época, nem agora. Mas aí temos ela como um grande exemplo de coragem e perseverança para atingir seus objetivos.”
Martínez Pulido aponta que “as atitudes misóginas da comunidade científica estão mudando”, em grande parte devido ao trabalho de historiadoras da ciência.
“Mas é uma mudança lenta, e o caminho pela frente ainda é longo e cheio de obstáculos.”
Sete décadas depois da Foto 51, a imagem representa para Martínez Pulido duas faces da ciência. Por um lado, a mais negativa, de hostilidade e traição entre colegas.
Por outro, “é uma bela prova de como uma grande cientista com profundo conhecimento de sua especialidade conseguiu obter, por meio de uma tecnologia de alta complexidade, a imagem da molécula mais importante de seu tempo: o DNA.”