Proteger documentos históricos com uma tecnologia segura o suficiente para que a verdade não seja tirada de contexto e a desinformação seja evitada. Esse é um dos objetivos que move o centro acadêmico britânico Starling Lab, uma iniciativa que está utilizando o sistema blockchain para guardar informações históricas de maneira descentralizada.
O blockchain é a mesma tecnologia usada para a transação de criptomoedas, como o Bitcoin, e tokens digitais (como NFT). Ela foi escolhida por permitir o armazenamento de registros virtuais de forma descentralizada. Ou seja, várias máquinas possuem uma cópia de um único dado.
Em parceria com a Fundação Shoah, uma organização sem fins lucrativos dedicada a registrar entrevistas audiovisuais com sobreviventes e testemunhas do holocausto (que, em hebraico, são chamadas de “shoah”), o Starling Lab está criando cópias dessas entrevistas para preservá-las em múltiplos servidores espalhados pelo mundo, com a intenção de que o material não seja perdido ou esquecido.
Depoimentos históricos, como aqueles gravados por ex-prisioneiros de campos de concentração como Auschwitz e Bergen-Belsen, são considerados peças fundamentais, parte da história da humanidade. É o caso de Anita Lasker-Wallfisch, que relata em um vídeo a experiência de “viver em pilhas de corpos” na época, segundo reportagem do site Fast Company.
O depoimento dela é o primeiro a ser digitalizado e preservado em blockchain pela iniciativa. O objetivo do projeto é salvar mais de 56 mil depoimentos em formato de vídeo, criando uma espécie de “backup” dos registros em discos rígidos ou na nuvem.
Além dos relatos sobre o holocausto, a iniciativa também monitora a guerra na Ucrânia, com o objetivo de selecionar e registrar dados que também precisem ser anexados ao blockchain.
Por que escolheram o blockchain
Blockchain um banco de dados seguro e compartilhado, criado para guardar as informações e transações dos usuários que bitcoins, desde 2008. Ele protege endereços eletrônicos de quem envia e recebe as moedas digitais, data e hora da transferência e faz outras criptomoedas funcionarem.
A diferença é que toda informação, quando é recebida, registrada e validada, fica permanentemente imutável — ou seja, sem possibilidade de ser alterada e quase impossível de ser corrompida.
Isso porque o blockchain não é um servidor ou banco de dados centralizado, mas uma rede formada por centenas de milhares de computadores espalhados pelo mundo.
Cada computador guarda um pedacinho dessas informações, de modo que, mesmo que dezenas deles sejam destruídos, a informação continua existindo, porque é compartilhada com outras máquinas.
É por isso que o blockchain é considerado uma alternativa para o registro de informações delicadas como as que a Starling Lab está querendo proteger.
“O resultado final é que, paradoxalmente, quanto mais você espalhar informações e fornecer computação de forma distribuída, mais confiável poderá ser”, diz Jonathan Dotan, fundador do Starling Lab, em entrevista ao site Fast Company.
“Nesse contexto, a descentralização significa apenas criar muitas réplicas”, acrescentou Dan Boneh, diretor do Laboratório de Segurança da Computação na Universidade de Stanford, que trabalhou com Dotan na criptografia do projeto.
Cada testemunho coletado pela iniciativa é verificado para garantir que os dados do arquivo não estão corrompidos. Em seguida, ele recebe um identificador de conteúdo exclusivo no sistema do blockchain (chamado hash).
Combatendo fake news
O Starling Lab também está criando uma interface que permitirá que especialistas de fora do centro acadêmico — como advogados, historiadores, analistas e jornalistas — ofereçam contexto e comentários sobre uma imagem ou vídeo armazenada na rede, criando o que Dotan chama de “uma forma distribuída de consenso”.
Com esse “carimbo” do consenso descentralizado, o Starling Lab espera que as informações preservadas com blockchain sejam mais confiáveis do que aquelas que circulam sem verificação pela internet — como todo tipo de boato e notícia falsa que ganha projeção em redes sociais e motores de busca.
Além disso, o centro acadêmico criou um programa de apoio a jornalistas que queiram usar a mesma tecnologia em suas redações para autenticar informações e se diferenciar de sites e blogs de fake news com agenda ideológica que dificultam o debate na internet.
“Não queremos ser o registro oficial da verdade”, diz Dotan. “Nós nos vemos como parte de um ecossistema benigno que pode ser continuamente descentralizado.”