As pesquisas na internet feitas por brasileiros para saber o que é racismo estrutural explodiram nos últimos três anos, mostram dados gerados pelo Google para o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, celebrado neste domingo (3) e obtidos com exclusividade por Tilt.
No balanço dos últimos três anos (2019 a 2022), as buscas por “racismo estrutural” no Google saltaram mais de 1.400% em comparação aos anos anteriores. A empresa desenvolve o buscador usado por 97% dos internautas do país, segundo a StatCounter. Para especialistas procurados pela reportagem, como o professor e filósofo Silvio Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural”, os acontecimentos recentes, como o assassinato de George Floyd em 2020, despertaram as pessoas para o conceito, que acabou entrando para o vocabulário.
Até 2018, a expressão “racismo estrutural” teve buscas tímidas no Google, não chegando a um terço do índice máximo de interesse. O cenário mudou a partir de junho de 2020, momento em que alcançou seu ápice histórico. O mês sucedeu o assassinado de George Floyd, homem negro assassinado por um policial em Minneapolis, nos Estados Unidos.
Em meio à pandemia do coronavírus, a morte de Floyd gerou uma onda de protestos que não se restringiu aos Estados Unidos e chegaram ao Brasil. A mobilização reacendeu o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em tradução livre), nascido em 2013.
A população brasileira voltou a pesquisar o termo em novembro do mesmo ano, mês que ficou marcado pelo assassinato de João Alberto Silveira Freitas em uma unidade do Carrefour de Porto Alegre. O homem negro foi morto após ser agredido por dois seguranças, um deles um PM fora de serviço, na véspera do Dia da Consciência Negra, celebradno em 20 de novembro.
“As buscas estão diretamente relacionadas com o impacto que esses casos tiveram na sociedade. Foram crimes de bastante comoção social. Quando acontecem conflitos grandiosos, as pessoas tendem a se incomodar e perceber que nós não estamos vivendo uma normalidade. As buscas refletem um pouco da reflexão e angústia da sociedade”, pontua Silvio Almeida.
Segundo a edição mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a violência no Brasil é mais direcionada à população negra. Segundo o levantamento, policiais mataram 6,1 mil pessoas em 2021, o que representa queda de 4,9% em comparação com 2020. Apesar da diminuição global, o recorte racial mostra outra realidade. Entre negros, 84% dos assassinados pela polícia, o índice subiu 5,8%. Entre brancos, o índice caiu 31%.
Segundo o levantamento, expressões como “lei de racismo”, “crime de racismo” e “casos de racismo” também esteve entre os termos mais buscados.
Nova expressão no vocabulário do brasileiro
De acordo com Luiz Augusto Campos, professor de Sociologia do IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), os eventos ocorridos em 2020 fizeram com que a população recorresse ao estudo e às teorias sobre raça para compreender o que estava ocorrendo.
“Houve um evento que deixou exemplificado como o racismo funciona. A partir daí, buscou-se um termo formado a partir de uma reflexão teórica. E o racismo estrutural entrou no vocabulário das pessoas”.
Como efeito dessa busca por conhecimento, o livro “Racismo Estrutural”, de 2018, entrou na lista dos mais vendidos do site Amazon em 2020. Naquele ano, o “Pequeno manual antirracista”, livro de Djamila Ribeiro com o propósito de tratar a pauta antirracista de forma didática, foi o mais vendido no site.
“As pessoas querem entender melhor o racismo como um fenômeno complexo, que vai além da discriminação direta. Querem compreender quais são os mecanismos que reproduzem a discriminação racial e que muitas vezes são ocultos, velados e fazem com que a sociedade naturalize o preconceito”, avalia Silvio Almeida. Para o especialista, adquirir conhecimento pode ser um passo para o processo de responsabilização diante do problema.
“O antirracismo não se constitui no apontamento da culpa, mas fundamentalmente na fixação da responsabilidade. Ou seja, é preciso assumir e reparar. A responsabilização precisa ser individual e coletiva. É necessário olhar ao redor e pensar o que é possível ser feito”, acrescenta.
Quem mais pesquisa sobre racismo no Brasil?
Nos últimos 12 meses, o interesse pela pauta racial fez com que o Brasil ocupasse o 5º lugar entre os países que mais buscaram pela palavra “racismo” em todo mundo. Ficou atrás apenas da Bolívia, Canadá, Estados Unidos e Reino Unido.
Para o professor Silvio Almeida, uma das hipóteses para o recente interesse do povo boliviano pelo racismo é a forma como o caso de George Floyd também fez com que a sociedade passasse a olhar para o racismo em outras esferas, como na política.
“Diante da situação política da Bolívia depois do golpe de estado, evidenciou-se um caráter não só de classe, mas também de raça dentro dos conflitos políticos do país, que tem uma população negra e indígena grandiosa. O racismo como fenômeno global está veiculado a outros conflitos que não somente os raciais, mas em outros setores da sociedade como a política e a economia”, avalia.
Para Campos, o interesse pelo racismo enquanto conceito pode ter relação com o fato de que os crimes envolvendo preconceito racial nos últimos anos ajudaram a desconstruir o mito de que o Brasil era um país que havia superado essa mácula.
“Quando se difunde a ideia de que o Brasil é sim um país racista e esse racismo é central para o funcionamento da sociedade, as pessoas têm uma dúvida natural de entender o que é racismo e como ele funciona. É um fenômeno muito complexo, então existe uma demanda por letramento racial”, pontua.
A Bahia, que possui a maior população negra do Brasil, foi o estado que mais buscou por “racismo” no país. Na sequência, vieram as populações do Maranhão, Amapá, Distrito Federal e Pará. Na ponta oposta, Santa Catarina, Paraná e Rondônia são os estados que menos buscaram o assunto nos últimos 12 meses.
No último ano, os brasileiros também ficaram mais atentos a palavras e frases que podem ser consideradas racistas. Entre as buscas, procuraram por expressões de origem escravocrata como: “Denegrir é racista?”, “criado mudo é racista?”, “Segurar vela é racista?” “rodar a baiana é racista?, “Esclarecer é racista? e “crioulo é racista?.
O que é ser pardo?
De acordo com dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) 2019, 46,8% da população brasileira se declara como parda, o que corresponde à maioria. Os brancos são 42,7%, os pretos são 9,4%, enquanto amarelos e indígenas somam 1,1%. No Brasil, são considerados negros os pardos e pretos.
Apesar de os brasileiros se identificarem majoritariamente como pardos, existe bastante dúvida a respeito dessa classificação. Segundo os dados obtidos pelo UOL, a palavra “parda” também foi objeto de curiosidade nos últimos 12 meses. Tanto que o termo ocupou a 3ª posição no ranking geral para a pergunta “como saber se sou?”. Ficou atrás apenas de “autista” e “estéril”. A pergunta “o que é uma pessoa parda” teve alta de 35% nas busca nos últimos três anos, em relação ao período anterior.
Para o sociólogo Luiz Augusto Campos, o processo de incentivo à mestiçagem no Brasil deixou as fronteiras raciais fluídas, o que gera questionamentos sobre a autoidentificação das pessoas no país. O processo de cotas, mediante autodeclaração racial, também fomentou essa discussão sobre quem pertence ou não ao grupo de pessoas negras.
“Temos uma dúvida muito sensível entre quem é branco e quem é não branco no Brasil. A fronteira está nesta categoria complexa do ‘pardo’. Logo, o aumento das buscas traduzem essa dúvida que tem a ver com as mudanças na maneira de enxergar a racialidade no Brasil. Continuamos mestiços, mas também passamos a nos ver como um país racista. Essas questões se relacionam com as políticas de ação afirmativa que convertem o ônus de ser preto ou pardo no Brasil em um bônus mínimo para compensar as desigualdades.”