Existem muitos debates acontecendo no campo das inteligências artificiais. Um dos mais interessantes é o que divide pesquisadores, filósofos e engenheiros entre os que acham que é possível que sistemas baseados em inteligência artificial ultrapassem os humanos em termos de capacidade cognitiva e raciocínio e os que acreditam que esses engenhos jamais conseguirão ultrapassar os limites do que é possível ser aprendido e replicado pelo treino.
Essa dicotomia lembra um pouco a que separou adeptos de balões e aviões bem no início do século 20.
Em 21 de novembro de 1783 Jean-François Pilatrê de Rozier e François Laurent, o marquês de Arlandes, voaram durante quase meia hora.
Transportados numa plataforma circular presa ao fundo de um balão de ar quente, a dupla só teve de alimentar o fogo manualmente pelas aberturas em ambos os lados da saia do balão que chegou aos 150 metros de altura e viajou quase nove quilômetros sem problemas.
Ao desembarcarem do engenho criado com papel e seda pelos irmãos Montgolfier, o marquês e seu companheiro de aventura tiveram de distribuir garrafas de champanhe aos camponeses, que temiam estar diante de uma coisa do demônio.
Apenas dez dias mais tarde, subia aos céus de Paris o primeiro balão a gás, lançado por dois irmãos: o físico Jacques Alexandre Cesar Charles e o inventor Nicolas-Louis Robert. Durou 2 horas e meia e cobriu uma distância de 40 quilômetros.
Benjamin Franklin apontou a possível utilidade dos balões em guerras apenas três meses após os primeiros voos de balão tripulados na França em 1783.
E realmente, os balões de gás estiveram sobre as trincheiras e foram o principal meio de transporte aéreo até a invenção da aeronave de asa fixa pelos irmãos Wright na América em 1903 (sim, houve Santos Dumont antes, mas foram os americanos que garantiram o pulo do gato).
Mas não pensem que a façanha dos Wright foi recebida com pompa e circunstância. O professor de Matemática e Astronomia, Simon Newcomb, por exemplo, achava que voar em máquinas mais pesadas que o ar era “impraticável e insignificante, se não totalmente impossível”.
Não estava sozinho. O editor de engenharia do “The Times” de Londres disse:
“Todas as tentativas de aviação artificial não são apenas perigosas para a vida humana, mas fadadas ao fracasso do ponto de vista da engenharia.”
O avanço tecnológico deu no que deu: em 2020, se não tivesse começado a pandemia, 40 milhões de seres humanos teriam voado em algum tipo de engenho derivado do aparelho que os irmãos Wright tiraram do solo em 1903.
Já os balões assumiram um papel quase romântico e fazem aparições aqui e acolá como experiências turísticas ou desportivas.
Voltando para as inteligências artificiais, o campo segue avançando, com novos artigos e sistemas sendo lançados constantemente, a última peça desse mosaico é produto da DeepMind, companhia especializada no ramo que foi adquirida pela Google em 2014.
Denominada Gato, o novo paper da DeepMind explica o funcionamento de uma Inteligência Artificial Generalista, que é como chamamos os sistemas que não têm um ‘campo de conhecimento especializado’ e podem ser utilizados para produzir diferentes tipos de respostas —produzir uma receita, escrever uma peça publicitária ou até mesmo pedaços de código de computador.
Normalmente esses sistemas são treinados em uma única ‘linguagem’ então, embora generalistas, os sistemas que geram texto APENAS geram texto, aqueles que trabalham e reconhecem imagens APENAS identificam imagens.
A novidade no Gato é que ele se propõe a realizar 604 tipos de tarefas diferentes, em domínios completamente distintos, então o mesmo sistema pode:
- Escrever textos
- Jogar Atari
- Reconhecer imagens
- Controlar um braço robótico e empilhar caixas
- Entre outros
Essa multiplicidade de tarefas é interessante, porque muito embora o sistema tenha sido treinado com diferentes dados para cada uma das tarefas, o algoritmo e os pesos utilizados são os mesmos, ou seja o ‘cérebro’ é o mesmo e ele é capaz de produzir resultados para muitos contextos diferentes, assim como nosso.
Até então, a maior parte dos sistemas generalistas, trabalhavam com um único domínio específico. Uma IA capaz de escrever textos era incapaz de reconhecer uma imagem e vice-versa e a forma de contornar isso era conectar IAs diferentes para cada contexto.
A qualidade desses resultados varia de tarefa para tarefa, mas existem resultados promissores. Por exemplo, o Gato se mostrou um jogador de Atari melhor que os jogadores humanos em 23 jogos diferentes.
Só para efeitos de comparação, os pesquisadores treinaram também um agente especificamente para jogar vídeo game e o agente especializado conseguiu resultados superiores em 44 jogos.
Os avanços seguem acontecendo, com sistemas maiores e mais sofisticados surgindo a todo momento, assim como novas técnicas de aprendizagem de máquina.
É um campo pulsante, e cada inovação descoberta e socializada rapidamente acaba servindo de degrau para novas inovações e descobertas em um ciclo virtuoso.
A questão central segue em aberto:
- Atingir a chamada ‘singularidade’ –onde a máquina vai ficar tão inteligente que vai conseguir aprender a aprender e a inteligência artificial vai ampliar sua própria inteligência de forma exponencial– é só uma questão de tamanho do banco de dados e capacidade de processamento;
- Se precisaremos de novos algoritmos e técnicas ou;
- Se, de fato, existe algo único no nosso cérebro que não pode ser reproduzido por máquinas.
Someone’s opinion article. My opinion: It’s all about scale now! The Game is Over! It’s about making these models bigger, safer, compute efficient, faster at sampling, smarter memory, more modalities, INNOVATIVE DATA, on/offline, … 1/N https://t.co/UJxSLZGc71
— Nando de Freitas ️ (@NandoDF) May 14, 2022
Para um dos autores do Gato, em resposta a um artigo que analisava a inteligência artificial e considera que esse é um beco sem saída, é de que o caminho já está dado e agora é uma questão de tempo e escala.
A eventual emergência de uma inteligência artificial capaz de aprender e superar a inteligência humana gera outros debates —debates éticos e de segurança, com os mais apocalípticos alertando que esse pode ser um caminho sem volta para a própria soberania da nossa espécie… mas esse é um tema para uma próxima coluna 🙂