Museu de objetos incomuns: veja essa nova proposta


Acabo de sair de uma conferência do filósofo camaronês Achille Mbembe na Universidade de Londres (Birkbeck), onde ele fez uma meditação que vale a pena ser compartilhada.

Costumamos olhar para nossos museus como símbolos de nossa história material e peças de memória coletiva que dão corpo para eventos e experiências passadas.

No entanto, se consideramos a história destes mesmos museus e de como eles se desenvolveram em comunhão com o desenvolvimento dos estados nacionais, percebemos que em geral eles pertencem ao projeto de justificar a existência de um povo, nação ou até mesmo uma língua.

Olhando para os museus europeus, Mbembe observa que eles são também uma espécie de zoológico de objetos. Objetos sequestrados (em geral de outros continentes e outras culturas) e que permanecem retidos em um enquadre que os retira de seu contexto de produção e uso.

Considerando apenas o caso do Congo, estima-se que existam por volta de 60 mil objetos removidos para os museus, ou para os porões dos museus belgas, do qual aquele país foi colônia. O caso das peças egípcias e gregas é ainda mais dramático.

O problema atraiu a atenção de psicanalistas e psicoterapeutas, pois ele é homólogo de uma série de situações sentidas como uma espécie de sequestro, cativeiro ou exílio de uma parte da história de uma pessoa, família ou comunidade.

É o caso dos corpos desaparecidos, dos lutos silenciados ou das perdas que são impostas e tramitadas segundo uma determinada narrativa “oficial” na qual aquele que sofreu a perda não se reconhece.

A homologia entre as peças levadas para outros países e os nossos fragmentos de história, sequestrados por narrativas impostoras, nos leva ao conceito fundamental de reparação. Ou seja, como os museus e as psicoterapias podem se tornar dispositivos de devolução de experiências para sua potência, uso ou função inicial.

Na clínica, assim como na museologia, não basta devolver a coisa ao seu dono.

Por exemplo, o governo de Benin recebeu recentemente uma quantidade expressiva de peças em bronze de instituições francesas, o que criou um problema imediato: como conservar, cuidar e regular o acesso coletivo a tais objetos uma vez que seu contexto original não existia mais?

Muitos objetos sequestrados são majoritariamente egressos da África. Ao longo do processo colonial, eles foram apropriados por instituições ocidentais, como troféus de guerra. Ali eles foram arquivados, cuidados, rastreados e tornados parte de uma história contada pelo lado dos vencedores. O próprio trajeto destes objetos até os museus é muito difícil de reconstruir.

Curiosamente eles representam o inverso de nosso problema contemporâneo com fronteiras, muros e condomínios. São objetos que foram forçados a imigrar depois de colocarmos uma máscara encobridora para despistar nosso olhar. Tais objetos retornam como espectros fantasmáticos formando nosso imaginário paranoico sobre o Outro: bárbaro, perigoso e incivilizado.

Mbembe propõe que, em vez de devolução ou indenização, a tarefa dos museus universais (ou, como ele diz, “verdadeiramente universais”) seria a de recuperar sua potência expressiva, por meio de um sistema planetário de circulação destes objetos.

Tais objetos aprisionados exigem novas modalidades de exibição. Deveriam ser tratados como “seres vivos flexíveis”, alguns dotados de propriedades mágico-curativas, outros memoriais de alta capacidade, outros enigmas cognitivos ou de linguagem.

Na África, existem museus de formas vivas. Eu mesmo visitei alguns na Namíbia, na Tanzânia e no Egito. Lembremos que a recuperação da função de uso dos objetos de arte era parte também da plataforma de artistas brasileiros como Lygia Clark e Hélio Oiticica.

A restituição destes objetos é a recuperação da “capacidade de verdade” que tais objetos possuem, potência necessária para a construção de um novo tipo de consciência universal, baseada no reconhecimento da finitude.

A durabilidade da Terra precisa ser percebida em comum, por todos. Isso precisa ser assimilado pelas políticas de identidade, por políticas ambientas e por um novo tipo de governabilidade que leve em conta a categoria de cuidado (care).

Desta maneira, um museu itinerante deixaria de ser uma coleção de demandas passadas, que justificam nosso presente, mas uma projeção de mundos futuros, formulados a partir de um presente precário.

Tais museus seriam museus do incomum, não no sentido da negação daquilo que é comum, mas como afirmação daquilo que por não pertencer a ninguém em particular, pertencerá a todos nós.



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