Este ex-policial que virou guia literário pode inspirar nossa polícia


Durante as discussões que acabaram por eleger Bolsonaro em 2018, o tema da violência e da insegurança social foi certamente um dos mais agudos e decisivos. Quatro anos depois, podemos apreciar alguns resultados da política de facilitação do acesso a armas, generalização do “excedente de ilicitude”, militarização de escolas e cargos políticos.

Nestes últimos quatro anos, o discurso das armas e da família tornou-se oposto ao discurso da educação, da cultura e das universidades. Lembremos que corporações militares baseiam-se frequentemente no reforço e imitação dos laços familiares e que a educação está destinada a nos “tirar para fora” destes laços primários, nos emancipando de nossa minoridade intelectual.

Estando em missão acadêmica em Londres, lamentei não poder participar da Bienal do Livro, que pelo que leio, representou um verdadeiro momento de renascimento cultural e de retomada das comunidade de leitores.

Para matar as saudades me inscrevi num destes passeios literários que existem em muitas cidades da Europa e deveriam ser mais comuns no Brasil.

Depois do quinto pub falando sobre Virginia Woolf, T.S. Eliot e Charles Dickens, o nosso simpático e erudito condutor revelou a origem de seu gosto pelo teatro, sua trajetória como ator e afinal como ele tinha vindo a se interessar pelos detalhes dos bairros boêmios de Fitzrovia e Soho.

Depois de quatorze anos no exército e na polícia, ele tinha descoberto, gradualmente, o valor da palavra no trato com os “maus elementos”.

Grandes escritores nem sempre foram pessoas comportadas e em geral estão engajados em pensar mundos nascentes, logo, em destruir criativamente os mundos atualmente disponíveis.

Ainda que exista certa desafinidade natural entre artistas e policiais, uma cultura não deveria ser avaliada pelos extremos à direita ou à esquerda, mas pela forma como ela organiza suas oposições entre centro e periferia, sem dissolver a contradição em uma terceira via.

Isso significa simultaneamente dar espaço e voz para os que, habitando o centro, falam desde sua periferia e, inversamente, escutar os que, pertencendo às margens, colocam-se no centro da periferia.

Transformações políticas e sociais acontecem desde a articulação entre estes polos secundários. Elas são parte das “condições subjetivas”, para a transformação radical e profunda que queremos e precisamos.

Frantz Fanon, Simone Weil, Gandhi, Angela Davis ou Che Guevara são exemplos de pessoas “bem educadas” e referências para o que é uma vida intelectual. Esta não se define pela sua erudição ou cultura, por sua profissão ou orientação política, mas pela capacidade de desejo de “falar fora de lugar”.

Isso é muito mais visível quando olhamos exemplos da elite de esquerda e vários de seus reformadores sociais, líderes religiosos e filósofos que pensaram contra sua própria posição ou origem, às vezes combinando-se em parcerias com o polo oposto e complementar.

Karl Marx, oriundo da educação de classe média, e Friedrich Engels, aristocrata herdeiro de indústrias, são um caso exemplar da boa mistura entre caviar com pão francês.

O caso de Richard, nosso guia literário, é um exemplo oposto. Oriundo do empobrecido distrito de Kent, nos arredores de Londres, ele encontrou na instituição policial uma forma de galgar uma carreira viável.

Como tantos brasileiros que encontram nos seminários religiosos e nas escolas militares oportunidade para dar suporte e continuidade aos seus estudos, ele foi levado a este momento agudo de separação entre o que nos formou e o que queremos a partir disso.

Foi andando pelas ruas de Londres que ele se deu conta da importância da palavra para conter e lidar com os conflitos cotidianos, mas também para expressar seus próprios conflitos, suas escolhas e engajamentos.

Sua sabedoria prática incluía exemplos como: “nunca diga para alguém que está visivelmente nervoso algo como: fique calmo!”. Isso provavelmente vai soar como uma ordem ou uma posição de hierarquia, o que fragilizará ainda mais o sujeito. Mas a demonstração deste princípio elementar é feita por meio de um poema de Dylan Thomas e um fragmento de “Oliver Twist”.

No caso de Richard, isso passou por uma formação complementar em dramaturgia. Mas tomo sua trajetória, da polícia para a literatura, como exemplo da necessidade urgente de pensar a reforma do ensino das polícias nos Brasil. Isso representaria um verdadeiro reinício do combate a corrupção.

O uso recente de câmeras nos uniformes, com a aparente redução de violência policial e de violência contra policiais, parece uma faceta do mesmo problema.

A câmera não é apenas um instrumento de denúncia de excesso e produção de provas processuais. Capaz de conter abusos imediatos, ela introduz um excedente de cultura, um “efeito palco” que frequentemente associamos com urbanidade e civilidade.

A ideia de que todos podem “vir a saber”, pelo acesso às imagens, mostra-se assim ao mesmo tempo uma prática disciplinar digna do panóptico foucaultiano, mas também seu oposto, um sinal de conexão e proteção contra a tirania da invasão da violência pública contra a vida privada das pessoas e empuxo à palavra.

Não haverá desmontagem do bolsonarismo, independente do resultado das eleições de outubro, sem uma reforma radical da educação militar e policial do país.

De forma resumida: precisamos de mais literatura policial e menos polícia literária.

A proposta mais óbvia é que tal formação passe a ser imediatamente controlada pelas universidades, regida pelos mesmos órgãos da avaliação e investimento que atuam sobre a educação geral, a ciência e a pesquisa no Brasil.



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