entenda a nova moeda digital da China e o que está em jogo


Nos Jogos Olimpíadas de Inverno em Pequim, em fevereiro, a patrocinadora Visa não era o único meio de pagamento nas arenas esportivas e na Vila Olímpica. Pela primeira vez, ela tinha a concorrência do e-CNY, a nova moeda digital chinesa.

Antes de mostrá-la ao resto do mundo, o Banco Central chinês fez questão de popularizá-la internamente. Um mês antes, lançou nas principais cidades do país um app de carteira digital, que facilita transações.

E isso é só o começo. A futurista Amy Webb, CEO do Future Today Institute e autora do relatório anual Tech Trends Report, apontou a ascensão do e-CNY como uma das principais tendências dos próximos anos. “A China pressionará por um uso ainda mais amplo”, vaticinou.

Mas, afinal, o que é essa moeda digital? E por que a China está interessada nesse mercado?

Não é uma criptomoeda

Embora todas as criptomoedas, como Bitcoin e Ethereum, possam ser classificadas como moedas digitais, nem todas as moedas digitais são criptomoedas.

O prefixo “cripto” indica que há uso de criptografia para assegurar e verificar as transações na rede, funcionando de forma descentralizada.

Já o e-CNY, também chamado de renminbi digital, pertence a uma outra classe de moedas digitais, vinculadas às divisas oficiais de um país e operadas pelo seu banco central.

Conhecido pela sigla CBDC (em português, “moeda digital de banco central”), esse tipo de moeda vem sendo estudado em países do mundo todo. A China não é a primeira a lançá-lo: Bahamas, Nigéria e Camboja são algumas das nações que já possuem CBDCs em circulação.

Mas, é claro, a China tem um peso maior no tabuleiro internacional, além de ter a maior população do planeta, o que já faz com que ela saia na frente na difusão da sua CBDC.

Motivações financeiras e políticas

Foi em 2014 que o Banco Central da China anunciou ter iniciado os estudos para o desenvolvimento de uma moeda digital. Uma das motivações mais claras é o contexto econômico e financeiro mundial: as autoridades chinesas veem necessidade de ter uma alternativa ao dólar.

“Quando suas próprias transações comerciais dependem da cotação internacional do dólar, o que acontece na maioria dos países hoje em dia, você acaba ficando um pouco suscetível”, avalia Danielle Makio, pesquisadora de relações internacionais pela Universidade de Glasgow, na Escócia. “Então, com a moeda digital, você pode tentar se prevenir de possíveis oscilações do câmbio.”

Ela explica que, pelo tamanho da economia chinesa, a incerteza e a insegurança podem ser perigosas. Como o e-CNY é uma versão digital da moeda física chinesa, seu valor é equivalente. Então, há uma utilidade prática em oferecer a países, mercados, empresas e pessoas físicas a possibilidade de fazer transações com essa moeda.

Além disso, segundo Makio, uma das características da inserção internacional da China é exatamente o questionamento da hegemonia dos Estados Unidos.

“À medida em que a China oferece uma opção de moeda digital, cujas transações são ainda mais fáceis do que na moeda padrão, no papel-moeda, ela sem dúvida tenta questionar a centralidade do dólar e dos Estados Unidos, criando saídas desse controle financeiro”, afirma a pesquisadora.

Dessa forma, os chineses buscam ganhar peso em sua capacidade de influenciar consensos e grandes tomadas de decisão no sistema internacional.

Demanda interna

Ainda que a China possa ter objetivos estratégicos a longo prazo com o e-CNY, o fato de sair na frente de outras grandes potências com sua CBDC pode ser explicado de outra forma. Afinal, essa nova moeda digital não foi criada para realizar alguma mudança radical de rota na política chinesa.

“Essa moeda digital não está abrindo completamente o mercado [da China], não está liberalizando todas as formas de pagamento, não está suspendendo os controles de capitais de forma irrestrita. Não é uma mudança drástica”, explica Rúbia Marcussi, professora de relações internacionais da FACAMP (Faculdades de Campinas).

Além disso, há uma grande demanda interna no mercado chinês pela expansão do pagamento digital. De acordo com levantamento de 2021 da consultoria Ernst & Young, a China é líder mundial na adoção de tecnologias financeiras. Cerca de 87% dos seus usuários de smartphones utilizam esses serviços inovadores.

Até agora, porém, esse mercado estava muito concentrado em apps como o WeChat Pay e o Alipay, controlados por empresas, não por um banco central.

“Mas é preciso ver até que ponto a população vai incorporar essa nova moeda”, diz Marcussi. Na avaliação da professora, será importante expandir o e-CNY para outros grandes centros urbanos, fazer parcerias com empresas e substituir as formas de pagamento por aquelas realizadas por carteiras digitais. O e-commerce, por exemplo, pode ser importante nesse processo.

Já Makio lembra que a população rural chinesa ainda vive numa espécie de “vácuo digital”. De acordo com o Banco Mundial, em 2017, quase 20% dos adultos no país não possuíam uma conta bancária.

“Apesar de a China ter as cidades mais modernas do mundo dentro das suas fronteiras, a população no campo ainda tem uma relevância muito grande. O desafio dessa nova moeda será atingir essas pequenas cidades e vilas”, diz ela.

Mais uma forma de controle?

Com a aceleração dos testes com e-CNY desde 2020, aumentaram também as críticas e o ceticismo de analistas ocidentais.

A principal dúvida é sobre a falta de privacidade que uma CBDC da China poderia oferecer. Ela daria margem para um monitoramento ainda maior do Estado sobre seus cidadãos, desta vez acompanhando suas movimentações financeiras.

“É uma tensão super grande e, como em tudo que envolve a China, isso vem ainda mais à tona”, diz Marcussi. “[O e-CNY] não é uma criptomoeda, então, ele tem uma engenharia diferente. Há essa tensão entre a privacidade e os limites da tecnologia.”

Porém, ela ressalta que o questionamento da falta de privacidade na China é “desigual”: afinal, nós já fornecemos muitos dados sensíveis a empresas americanas.

Para Makio, embora criptomoedas como Bitcoin possam oferecer mais confidencialidade e proteção, ainda há um trabalho de regulamentação a ser feito. O e-CNY, por sua vez, oferece riscos ao dar às autoridades chinesas acesso automático sobre detalhes de transações financeiras, permitindo que tenham ainda mais controle sobre o que seus cidadãos andam fazendo.

“É quase como um Estado tentando ganhar do setor privado, o Estado tentando recuperar parte da sua influência e poder que, hoje em dia, é dividido com grandes players corporativos, como as grandes empresas.”



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