Cronenberg provoca a body art e o biohacking


Depois de quase uma década de silêncio, David Cronenberg retorna ao cinema com “Crimes do Futuro” (Crimes of the Future). O título é curioso não apenas pelo significado literal que ele suscita, mas porque o diretor canadense já havia lançado em 1970 um curta de mesmo nome e que nada tem a ver com o longa estrelado por Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristen Stewart.

A referência ao passado, contudo, não fica só aqui. Na verdade, faz sentido afirmar que o filme é uma metacolagem, ao apresentar uma espécie de “painel” de ideias e conceitos que se conectam com a própria obra de Cronenberg e com o que está acontecendo no mundo (em especial no ambiente artístico).

Neste novo filme, Cronenberg reforça a sua chancela de mestre do body horror, título que adquiriu com obras como “A Mosca” (The Fly), “Videodrome”, “ExistenZ” e mesmo a adaptação de “Almoço Nu” (Naked Lunch, de William S. Burroughs).

Enquanto seu filho Brandon segue os passos do pai em “Antiviral” e “Possessor”, David é mais corajoso ao mexer em um vespeiro bem específico, sensível e emergente, que é o caso da body art e do biohacking.

A body art, em si, não é novidade. Trata-se de um tipo específico de arte performática que se utiliza do corpo como plataforma não apenas no sentido de dar movimento e incorporar significados, mas de, física e biologicamente, ter o corpo como uma “tela em branco”. Há, portanto, conexões evidentes entre a body art e a body modification, que inclui tatuagens e piercings, por exemplo.

Enquanto modificações corporais são práticas culturais e artísticas presentes praticamente em toda a história da humanidade, a body art teve seu pontapé inicial nos anos 1960 com os Acionistas Vienenses.

Artistas como Hermann Nitsch, Otto Mühl, Günter Brus e Rudolf Schwarzkogler usavam o próprio corpo ou cadáveres animais como parte de suas instalações e performances que abordavam tópicos controversos e violentos. Faz parte da agenda da body art esse tipo de assunto, bem como questões de gênero, identidade e a relação entre corpo e mente.

Com o tempo, a body art chegou também na Itália e na França, onde recebeu o nome de art corporel. Nos anos 1970, foi a vez de conhecer o trabalho de Marina Abramovic, até hoje celebrada pela performance “Rhythm 0”, na qual a artista dispunha de diferentes objetos que a audiência poderia usar sobre ela. Após seis horas de performance, Marina não só foi despida pelo público, como teve seu corpo marcado com batom e, finalmente, uma pessoa apontou o revólver contra sua cabeça, desembocando em uma briga que encerrou a performance.

Ainda que a obra de Marina possa parecer chocante a algumas pessoas, existem outros nomes na body art e na performance que vão muito além no que diz respeito ao choque, à violência e à interferência em seus corpos. Por conta disso, é comum também haver uma intersecção com nichos como BDSM (bondage e sadomasoquismo).

Já na época dos acionistas vienenses houve casos como Heinz Cibuka, que fez uma performance simulando automutilação genital, mas também podemos citar Ron Athey nessa intersecção entre body art, BDSM e body modification.

Por isso, não é de se surpreender que uma das frases de impacto do filme de Cronenberg tenha sido “cirurgia é o novo sexo”.

Em títulos passados, o diretor já flertava com a relação entre a mutação e a mutilação do corpo humano e o erotismo, como foi o caso de “Videodrome” e “Crash”.

Em “Crimes do Futuro”, somos convidados a visitar um futuro em que os humanos já não sentem mais dor e nem correm risco de sofrer infecções —daí o motivo de cirurgias e mutilações serem feitas livremente, sem a menor preocupação asséptica. Assim como no sadomasoquismo, a busca pelo prazer se mistura à dor e, em um contexto onde ela não existe, conquistá-la se torna uma empreitada sinônima ao orgasmo.

Mas esse orgasmo não se dá apenas em nível erótico ou mesmo pornográfico. Aqui retornamos à ideia do orgasmo manifestada na arte sacra, nos êxtases dos santos: é tanto sobre atingir o ápice do prazer quanto alcançar a iluminação.

Não é à toa que performances de suspensão possuem, justamente, esse tom meditativo: não é sobre o sangue que escorre da ferida ou a dor que o performer sente, mas sim como esta possibilita que ele atinja um outro patamar de consciência e de significado.

Em “Crimes do Futuro”, Viggo Mortensen interpreta Saul Tenser, um artista que cultiva novos órgãos dentro de seu próprio corpo como parte de sua performance. Se, por um lado, esse futuro é ausente de dor física, isso fica irrelevante diante da trajetória desse protagonista que está sempre em um estado de sofrimento e debilitação.

Mas é nesse martírio em que se encontra sua genialidade que deveria ser, inclusive, premiada em um suposto concurso de beleza interna — uma referência a um breve diálogo travado no início de “Gêmeos – Mórbida Semelhança” (Dead Ringers).

Aliás, esse filme também dirigido por Cronenberg reaparece em vários momentos, seja nos instrumentos usados para checar os órgãos de Tenser ou ainda, arrisco, no uso de trocadilhos para nomear os protagonistas.

Em “Gêmeos”, Jeremy Irons interpreta os irmãos Mantle (que se lê “mental”, sinônimo de louco); já em “Crimes do Futuro”, Mortensen é Saul Tenser, que se lê “soul tenser”, daí uma possível referência a um “tensor da alma” —um título que faz jus à relação entre corpo e alma feita por Cronenberg em ambos os filmes.

Só que nem todo mundo realmente acredita que Tenser é tão genial assim. Em tempos pós-virais em que adolescentes comem pastilhas de sabão e pessoas morrem tirando selfie em pontos turísticos, infligir dor a si mesmo e fazer coisas irracionais por performance (tanto enquanto ato quanto como conquista) não é revolucionário.

Nesse caso, o detetive (Welket Bungué) que investiga Tenser chega a questionar se o artista é mesmo genial, senão, o nódulo que cresceu em sua barriga também poderia ser visto como uma obra de arte que seu corpo criou.

Isso fica ainda mais evidente na cena em que vemos um homem com o corpo coberto por orelhas implantadas. Ele tem seus olhos e boca costurados ao vivo, enquanto um narrador contextualiza o ato como sendo um pedido para prestarmos mais atenção e ouvir mais.

Com a força poética de um haikai de bot do Twitter, a performance continua com uma dança e, para uma crítica ali presente, o performer era um dançarino melhor do que um artista conceitual.

Apesar de Cronenberg ter dito que não conhecia o trabalho de Stelarc em uma entrevista, o artista é, justamente, conhecido por suas experimentações extremas com o corpo —ao ponto de ter, literalmente, implantado uma orelha em seu antebraço.

À primeira vista, “Crimes do Futuro” poderia ser conhecido como o filme que faz referência ao Stelarc, mas em vez de fazer uma apologia, Cronenberg ressalta quão raso o universo artístico e performático pode ser.

Essa cena, em específico, me fez lembrar de um incidente pessoal.

Anos atrás, antes de iniciar meu doutorado, apresentei um pré-projeto da minha pesquisa a alguns professores que, à época, pensei que poderiam ser meus orientadores. Quando trouxe à tona o tema do transumanismo e como algumas pessoas como Martine Rothblatt estavam fazendo experimentos com robótica e mind uploading, ouvi que isso não existia e que era coisa de ficção científica.

Para eles, transumanismo e ciborguismo eram dois conceitos que se reservavam à arte performática. Acreditava-se que as ideias defendidas por Ray Kurzweil ou Max Moore, por exemplo, eram manifestos artísticos tais como os feitos por nomes como o próprio Stelarc ou então Orlan (que, aliás, é visivelmente mencionada quando a personagem de Seydoux põe implantes na testa).

Foi por isso que, naquela mesma oportunidade, fui apresentada a uma pessoa que os professores julgavam interessantíssima e uma verdadeira ciborgue pelo fato de ter feito uma performance de dança usando roupa feita de placas-mãe.

O impasse em “Crimes do Futuro” é bem parecido com aquele que senti nessa ocasião.

Tenser estava sendo investigado pelo detetive porque sua performance, que consiste em criar órgãos, tinha características semelhantes à agenda de um grupo que estava manipulando a genética humana para que as pessoas pudessem, então, se alimentar de plástico e “resolver” o problema do excesso de plástico descartado no planeta.

Anos atrás, tive a oportunidade de acompanhar a performance dos artistas Neil Harbisson e Moon Ribas em São Paulo. Em uma semana, os fundadores do coletivo artístico Cyborg Foundation criaram, junto a uma equipe de especialistas, um implante dentário através do qual eles poderiam se comunicar remotamente por código Morse.

Mas apesar de sua obra poder facilmente se comunicar com os preceitos do transumanismo e da ficção científica, isso não se confirmou quando eu os entrevistei mais tarde.

Nessa oportunidade, tive a chance de entender que os artistas estavam desenvolvendo sua própria noção de ciborguismo e a busca pelo uso da tecnologia como uma forma de nos conectar mais ao mundo natural.

Isso ficou evidente quando a dupla sugeriu o seguinte cenário: se conseguíssemos enxergar no escuro, como alguns animais conseguem, talvez não precisássemos de tanta energia elétrica e, por consequência, não estaríamos destruindo o planeta para poder gerá-la.

Por isso, tanto seu implante (que traduz cores em sons) quanto o de Moon (que traduz a atividade sísmica na Terra e na Lua em vibração nos seus tornozelos) são emulações de capacidades que outros animais possuem (morcegos e elefantes, por exemplo).

A preocupação da Cyborg Foundation era justamente a de usar tecnologia para conquistar um novo patamar da condição humana, seguindo fiel ao sentido original da palavra ciborgue.

Proposto nos anos 1960 por Maines e Maynes, o termo sugere o desenvolvimento de um organismo cibernético adaptado para sobreviver em ambientes inóspitos na exploração espacial.

Crimes do Futuro - Divulgação/Serendipity Point Films - Divulgação/Serendipity Point Films

Léa Seydoux, Viggo Mortensen, Kristen Stewart no filme “Crimes do Futuro”

Imagem: Divulgação/Serendipity Point Films

Em “Crimes do Futuro”, o grupo investigado cria uma forma não apenas de modificar o corpo humano, de modo a nos fazer capazes de processar plástico em nossa alimentação, mas também como essa capacidade seria passada hereditariamente.

É nesse ponto que encontramos a intersecção entre o ciborgue performático e o ativista biohacker: ambos utilizam a tecnologia para modificar seu corpo, mas por motivos e finalidades que são sutilmente diferentes.

No filme, Tenser cria órgãos que não são funcionais, mas simbólicos e que fazem parte de sua performance artística. Já o grupo investigado modifica a biologia humana de uma forma que poderia ser vista como assustadora ou controversa, mas que visa à reparação de um problema ambiental.

Aqui, de novo, me conecto ao questionamento.

Em 2015, implantei um chip de NFC na minha mão. Ele possui uma chave criptográfica que pode ser usada como uma “senha” para desbloquear qualquer dispositivo que possua NFC. Ou seja, eu não precisaria ter uma chave para abrir uma fechadura eletrônica, apenas encostar minha mão nela.

Mas eu nunca realmente usei o implante a não ser quando estava em palestras, falando sobre o conceito de ciborgue e de transumanismo. Nessas oportunidades, então, muita gente me perguntava por que eu havia implantado algo no meu corpo, se eu podia só usar um cartão ou meu celular?

Implantes de NFC são bem discretos, enquanto que outros dispositivos como a antena de Harbisson são mais evidentes —ao ponto de que ele costuma sair de boné em público.

Com o aplicativo Eyeborg, qualquer um consegue fazer o mesmo processo que seu implante faz, o que suscita a mesma pergunta: para que implantar algo no seu próprio crânio em vez de usar, de repente, um celular?

Para muitos, faz mais sentido encontrar formas mais sustentáveis de produção de energia elétrica do que, de repente, injetar uma substância que promove visão noturna temporária.

Acontece que, na agenda biohacker e ciborgue, o corpo é o meio e não o final. Enquanto alguns procedimentos são mais conceituais e até estéticos, como poderia ser o caso do trabalho de Stelarc e Orlan, em outros casos há biohackers fabricando insulina para diabéticos e hormônios sexuais para pessoas transgênero.

“Crimes do Futuro” termina de forma aberta conforme Tenser se aproxima do grupo investigado e resolve passar pela mesma modificação. Há, portanto, uma aproximação entre a preocupação artística e estética com a funcionalidade política e manifesta na modificação corporal.

Cronenberg não está necessariamente falando que a arte é inútil se não tiver um propósito, porque arte, a princípio, não é para ser útil —isso é design. Porém, ainda assim fica essa sugestão por mais politização e ação.

Fica ao gosto do freguês se lhe apetece dançar com roupa de placa-mãe para falar do problema do lixo eletrônico ou hackear seu corpo para processar os microplásticos que já estamos invariavelmente ingerindo.



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