A Mulher da Casa Abandonada e as redes sociais


Basta uma rápida pesquisa nas redes para entender o tamanho da confusão gerada pela repercussão do podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, criado e narrado por Chico Felitti e produzido pela Folha.

“Trago atualizações fresquíssimas sobre a mulher da casa abandonada!” Arrasto para cima. “Meu drone registrou imagens exclusivas do local!” Arrasto para cima. “Trabalho muito perto então fui lá xeretarrr!” Arrasto para cima. “A mulher da casa abandonada pediu pizza!” Esses são alguns dos títulos dos primeiros —de centenas— de vídeos que vão surgindo nas redes.

Como chegamos nesse verdadeiro surto de atenção? Uma das formas de explicar o fenômeno pode ser o espelhamento, voluntário ou involuntário, entre o podcast e algumas das características mais marcantes e complicadas das redes sociais.

Economia da atenção

Saber prender o leitor, o ouvinte ou o telespectador é uma arte e não existe nada de errado nisso.

As redes sociais, por sua vez, passaram a explorar uma série de ferramentas para fisgar o usuário, fazendo com que ele passasse mais tempo online ou quisesse voltar com mais frequência. Pode incluir aqui a barra de rolagem infinita (sempre com novas atualizações) e os avisos coloridos de notificações, por exemplo.

Isso se chama “economia da atenção”. No caso do podcast, a estratégia para prender o ouvinte parece bem planejada. A personagem do título aparece na descrição como sendo “uma figura misteriosa” que mora na tal casa abandonada. Desperta curiosidade.

No último episódio, que trata exclusivamente de uma entrevista, o narrador alerta que o ritmo seria diferente, já que até ali o programa havia sido “um podcast narrativo, com cenas e com ação”. E completa: “o que você vai ouvir agora é só uma conversa.”

Acontece que as cenas de ação dizem respeito à investigação jornalística sobre um tema para lá de complexo.

Muita gente embarcou em uma trama de mistério e, quando a atenção já estava fisgada, se deparou com a descrição em detalhes de um crime que mexe com racismo, violência, privilégios e tantas outras questões que são um prato cheio para gatilhos de toda espécie.

Alerta de gatilho

O podcast, no final das contas, investiga a vida de Margarida Bonetti, uma brasileira que foi acusada de submeter uma empregada doméstica negra a trabalho análogo à escravidão por quase 20 anos nos EUA. Segundo investigação do FBI, Margarida agredia a empregada, que trabalhou em sua casa sem receber salário entre 1979 e 1998.

Renê Bonetti, que era casado com Margarida, foi condenado e cumpriu pena nos EUA. Ela veio para o Brasil, em meio às investigações, passando então a morar na casa dita abandonada. Acabou nunca sendo julgada.

Nas redes, não faltam comentários sobre a forma pela qual o tema foi apresentado e como ele impactou o público.

O programa dedica um episódio para mostrar como o caso de Margarida não é isolado e que situações de trabalho análogo à escravidão resistem nos grandes centros urbanos, disfarçados de serviços domésticos.

O alerta é mais do que necessário, incluindo ainda instruções sobre como denunciar.

Em um Brasil tristemente desigual e cruel, a submissão de vidas negras a tal regime é uma desgraça. E por isso mesmo muitos usuários passaram a questionar se o podcast não deveria ter sido mais transparente sobre a história que iria contar.

Não se trata de uma “figura misteriosa”, mas de um caso de trabalho análogo à escravidão, com episódios de violência e de maus-tratos.

E aqui mais uma característica desses nossos tempos em que a comunicação é mediada por redes sociais se impõe: quanto mais difícil o tema, maior a chance de que ele suscite questões diferentes (e sensíveis) em diversos públicos.

Por melhores que fossem as intenções do jornalista ao entrevistar a agressora, até para seguir a regra de se ouvir o outro lado, o simples fato de dar voz à personagem pode soar como um privilégio, cuja crueldade é acrescida pelo fato de que o crime se encontra prescrito.

Exposed para todos os lados

Revirar o passado alheio e trazer à luz fatos e informações sobre uma pessoa é uma prática que nunca sai de moda nas redes.

Nesse ponto, o podcast se conecta com a cultura do exposed, revelando não apenas a identidade da mulher da casa abandonada, mas também os elementos que levaram à investigação e processo judicial nos EUA.

Não demorou para surgir questionamentos sobre um chamado direito ao esquecimento, mirando especificamente a figura de Margarida Bonetti. Haveria algum interesse público em se revirar essa história?

Vale lembrar dois pontos.

Primeiro que não existe consenso, no meio jurídico, sobre o que seria o chamado direito ao esquecimento.

O próprio Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente que a figura não seria compatível, a princípio, com a Constituição Federal. Essa foi a decisão do caso Aída Curi, no qual familiares de uma jovem assassinada nos anos 50 buscavam ser indenizados pela TV Globo após a produção de um episódio sobre o crime no programa “Linha Direta”.

Em seguida, chama atenção que a discussão sobre direito ao esquecimento tenha por foco a figura de Margarida quando, após a publicação do podcast, com dois cliques nas redes se descobre o nome da vítima.

Mais uma ponte entre o podcast e a dinâmica das redes.

Ainda que o jornalista não tenha revelado o nome da vítima, como o caso teve repercussão midiática quando do julgamento de Renê Bonetti, a sua identidade está exposta em matérias da época. O seu nome foi inclusive grafitado nos muros da casa.

Publicidade inapropriada?

As redes sociais vivem buscando formas de integrar as inserções publicitárias em suas plataformas de maneira mais orgânica, buscando relacioná-las com os conteúdos publicados e evitando que elas prejudiquem a experiência do usuário.

No podcast “A Mulher da Casa Abandonada” existe apenas um anunciante: o filme “O Telefone Preto”, da Universal. Esta é a sinopse do filme: “Finney, um garoto de 13 anos, é sequestrado por um assassino e levado para um porão à prova de som. Após encontrar um telefone antigo, ele consegue escutar as vozes das vítimas anteriores do criminoso.”

Difícil imaginar que ninguém questionou se essa seria mesmo a melhor publicidade para se inserir em um podcast que aborda os maus-tratos sofridos por uma mulher vivendo por vinte anos em um porão.

Nas redes sociais, caso uma publicidade pareça estar fora do tom geralmente é facultado ao usuário ocultá-la. A dinâmica da publicidade nos podcasts é um pouco diferente. Em certos casos os produtores abrem espaço para a inserção publicitária sem saber exatamente qual propaganda será veiculada, podendo apenas selecionar categorias gerais.

Isso pode gerar muita confusão, como no episódio em que os ouvintes do podcast “Medo e Delírio em Brasília“, que critica o governo federal, tiveram que escutar propaganda do próprio governo enaltecendo suas realizações.

Ao que tudo indica a publicidade do filme “O Telefone Preto” é estática, já que ela aparece em todos os episódios do podcast. Por um lado fica o registro sobre o quanto essa propaganda foi de fato apropriada; por outro fica a dúvida sobre o quanto a viralização do podcast não pode ter rendido algum efeito na bilheteria do filme.

Uma grande teoria da conspiração

A culpa é toda do FBI, que em conluio com uma máfia de advogados, conseguiu usar o caso para fazer o Congresso dos EUA aprovar uma lei que impede a extradição de pessoas que foram submetidas a trabalho análogo à escravidão enquanto correm as investigações.

Essa é a explicação dada por Margarida na entrevista que fecha o podcast. Enquanto defesa, esse argumento mais se parece com uma grande teoria da conspiração, daquelas que volta e meia se encontra disseminada nas redes sociais.

Fala-se muito sobre como o uso das redes sociais deveria vir acompanhado do respectivo letramento digital, para que as pessoas possam compreender o que chega às mesmas pelas redes e como elas se comunicam através desses meios.

A dificuldade em se perceber as diferenças entre realidade e ficção por parte de Margarida ficam ainda mais claras quando ela envereda por uma fala sobre como os filmes de ação, que passam na TV Globo, revelariam as maquinações do FBI.

A entrevistada, quando confrontada com o fato de que suas explicações não batem com as conclusões da investigação do FBI e o julgamento pela Justiça norte-americana, argumenta: “o FBI não é um pessoal maravilhoso, super-honesto. Não é! Se você tá na Globo, se você assiste às coisas de FBI e de filme de ação, você sabe que o que eu estou falando é a mais pura verdade porque os filmes são muitas das vezes a representação da realidade.”

Fora das redes

Por fim, um último elemento liga a dinâmica das redes sociais ao podcast “A Mulher da Casa Abandonada”: o que acontece nas redes nem sempre fica nas redes.

A mobilização em frente à casa de Margarida Bonetti não deixa mentir. Ainda mais depois da incursão da polícia no local para investigar suposto abandono de incapaz e para resgatar os animais de estimação, acompanhados da ONG da apresentadora Luisa Mell.

No dia em que foi ao ar a entrevista de Margarida, um grupo de pessoas foi para a frente da casa gritar palavras de ordem e fazer lives. A Folha passou a inserir nos episódios um aviso de que “condena qualquer tipo de agressão e perseguição contras as pessoas retratadas no podcast”.

O podcast e as redes sociais parecem ter sido feitos um para o outro. Economia da atenção, gatilho, exposed, publicidade, teoria da conspiração e efeito fora das redes são apenas alguns dos pontos de contato.

Agora que o circo está armado, resta esperar que um último efeito das redes sociais também se manifeste com relação ao podcast: a rápida sucessão de tendências.

Se hoje o tema é onipresente na internet, e desperta um importante debate, amanhã ele dará lugar à qualquer nova controvérsia polarizante. Um dia A Mulher da Casa Abandonada voltará a ser A Casa da Mulher Abandonada.



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